terça-feira, 29 de março de 2016

de um lado o ruído o tempo da discórdia 
a esperança que vai pela cinza 
do outro a vida a passar descalça pela casa
silenciosa como o vento branco 
como naquele dia em que nos rendemos para amar
é com este trágico dualismo que resistimos ao mundo
ou à morte
a impetuosa força que nos chama para ir
e o silêncio calmo que nos pede para voltar 
assim as mães que acordam a rua à janela
e pedem aos filhos que voltem breves
assim este poema
e toda a tua ausência 
de um lado aquilo que quis ser mas nunca soube
o imperfeito uso da função dos objectos ou deste corpo
do outro lado a vida a passar descalça pela casa
em viagem mansa pelo tempo
rogo agora que me selem os lábios
e me deixem depois falar
que me cozam os lábios
com um fino silêncio branco 
o silêncio com que apagamos o ruído
o rumor que vem de dentro 
para me render definitivo ao mundo
sem hipótese de resposta 
que o silêncio seja a língua da persistência
da espera que dista entre este dia
e tudo aquilo que se opõe ao teu alcance

sexta-feira, 25 de março de 2016

Diminutivo

Para a tita e para o tata

Ele está sempre a morrer,
ele está sempre a renascer,
ás vezes até com as minhas mãos
e mesmo assim
há sempre outro homem algures.

Encontrei um pontão no mar Cáspio,
voltei a mentir as coisas certas.
Encontrei-te uma vez algures
a agora estamos no sitio certo.

Ele nunca se vai embora,
tal como disse o rei Salomão:
"O homem que não volte a beijar a sua mulher
nunca mais volta a ser homem".
E é incrível como nada é corpóreo
e há restos de uma mensagem
inscrita no horizonte.

quinta-feira, 24 de março de 2016

a última peça

a última peça que não vi no teatro em Atenas
porque me diziam ter visto vida junto à ágora 
e eu fui desgraçado
porque todos vamos cumprindo com as coisas que iludem o mundo
essa peça que terá sido inspirada em algum mito oriental
que nas costas de um poeta chegou a Éfeso
e só depois ao Piréu
testemunhando a geometria das coisas antigas 
que se enganaram na origem mas acertaram no destino
essa equação difícil e igualmente antiga que chamamos de amor
não resolve nenhum problema
não cura
nem nunca salvou ninguém de se apagar 
as imagens de uma terra final 
em que as mulheres se sentam à nossa espera
para depois se tornarem árvores de fruto 
e em tudo aquilo que uma criação pode com o corpo 
sem sair do lugar 
assim as mãos adornando o barro dos vasos 
depois da espera 
ou do fruto esbatido nas redes de apanhar 
e assim isto depois de tanto tempo 
de tanta água a bater em finisterra 
de tantas peças que fui ver para me contarem o mundo
à procura do texto da primeira cosmogonia
para me perceber e perceber o que viam os meus olhos
para recomeçar o mundo e contar de novo
quanto tempo daqui até à morte
até à ágora da última assombração

Essências n'O Movimento Impróprio do Mundo de Sara F. Costa



Os livros de poesia
lêem-se devagar
e ao acaso.

A não ser quando
a mão amiga é autora
e qualquer coisa
acontece com o livro.

Quando se torna inevitável escrever
porque é vida torrencial
ao ponto de inquietação.

Quando toda a poesia perde o seu sentido
e deixa de existir um último verso.

Talvez seja esse o segredo
de todas as grandes obras:
a vida de um criador
muito longe da morte.

***
  
Detenho-me junto do título do livro de poesia de Sara F. Costa. Quantos movimentos impróprios pode o mundo dar? Movimentos que, na minha visão em particular, se parecem com a inevitabilidade de uma elipse, uma elipse que nem sempre é própria, mas que nem por isso deixa de existir e de ganhar todo o tipo de ligações entre aquilo que é terra e o que é fogo. Logo o primeiro poema invade como só as cidades invadem, atirando-nos o horizonte de um Tejo sujo em Setúbal, um encontro súbito que se desvanece nesse horizonte de desleixo urbano; uma metrópole que fervilha dentro do corpo do sujeito poético enquanto o mundo se movimenta, tão lento quanto a inércia que o suporta. É neste longo e eterno movimento que as mais variadas formas vão surgindo como flores numa primavera distante e eclipsada. SFC interroga as coisas que não se vêm, mesmo tratando-se da obscuridade deste mundo que se parece a um palco. Um palco distinto onde a sua persona parece dançar sozinha uma valsa descontente. Um descontentamento que o é por todos os movimentos impróprios e sobre os quais SFC vai indicando preocupações cada vez mais materiais, não abandonando totalmente a dionísia sobre a qual a sua mão se deleita a escrever. Podemos ver como o Universo e as suas formas astronómicas se sobrepõem entre o mundo e o interior do sujeito poético.

É exemplar em “Na Rua em Daugavpils”, os versos: “ninguém sabe que galáxias profundas / dissimulamos por baixo da pele”; fazendo confundir corpos estelares transversos do corpo humano físico que, novamente, se fazem confundir com as referências geográficas pertencentes a SFC, “escuto o mar báltico no teu timbre”. Entre todas esncitas conexões que põem o sujeito poético no centro do Universo, também a linguagem assume esta importância clara de conexão do sujeito no centro da própria humanidade. Leio os versos, ainda na mesma orientação deste poema singular: “um homem passa por nós / enquanto te pergunta em russo / o melhor sítio para propor casamento à amada. / subitamente sentes que percebes um pouco de tudo”. Nesta forma é clara a questão da linguagem para o entendimento de um estágio da vida, assumindo proporções sensíveis e femininas que estão em oposição com a demanda rochosa e galáctica de que se faz parte da sua estética poética. Uma estética que é súbita e consegue pressagiar o seu próprio cenário pós-apocalíptico. Através de “O Autocarro Local” leio como se tratasse desse cenário: “este carro é a manhã pós-soviética, / há estrelas ardidas pelo chão, / a noite foi inexplicável”. E é impossível não ser atirado para esse lugar desolado que costumava ser a simplicidade de uma volta alegre neste autocarro, compondo ao longo do poema a sua própria ambivalência destruidora tomando ponto para o caos gerado pelo sistema em que atualmente vivemos; e em como dele não podemos fugir por mais impróprio que seja.

Em “Vou-te Contar o que Vejo:”, outras formas se estendem nesta primavera obscurecida, interrompendo a cadência com que os astros vibravam, mostrando antes a forma como sustêm os homens com os seus espíritos e estradas. Novamente volta a pintar tonalidades, “de verde, azul e branco / tudo cinzento por baixo” que se fazem confundir com a metrópole e os diversos signos que identificam um determinado caminho que vai “na mesma direcção” do corpo que o percorre em direcção ao seu fim último. Neste poema vemos as ligações de SFC: entre um poema que está vivo, mas cujo seus últimos verso são logo um cadáver. Torna-se a antítese de todas as palavras escritas que lhes são posteriores, mostrando como todas as ligações, inclusive aquelas que são maravilha humana “os carros alinham-se em andamento / todos com a inspeção em dia / e as luzes ligadas à noite” se desvanecem perante a única coisa que não liga e é desconhecimento total e absoluto: a morte.

A imagem do teatro e dos palcos volta florescer em “Amplifica o Actor que há em Ti” como uma referência cultural em SFC que está patente ao longo de toda a obra; como por exemplo em “Liberdade”, “tantas palavras começadas por a: acaso, ação, ator e adultério / amor / mas eu quero renascer das balas / e trazer-te livre / derramar-te no oceano com o mesmo sangue dos atores, / do adultério e de acaso”. SFC mostra a sensibilidade da mentira, do uso da ficção como cordão linguístico da própria forma literária, reinventando-se de novo a cada poema que surge numa persona que é diversa, mas tangível. É visível este deslocamento através de um corpo poético que deseja viver através da vida de outrem, como um ator, em “Exercício de Alteridade”: “às vezes queria ser outra para me vir como outras, / um espécie de exercício de alteridade / só que com fodas.”. Neste poema em concreto é possível ver como a persona surge cheia de uma desenvoltura sexual própria do imaginário pornográfico (“eu / ingénua como uma puta, /chupo e engulo”) onde uma forma que é naturalmente feminina rompe com o dogma masculino, impondo-se como uma igual através da corporização poética do elemento gineceu: “porque no meu útero rebentam todos os mares”.

A feminilidade ganha uma dimensão que se parece imprópria segundo o contexto social e cultural do meio interior português, um meio que vai sempre com uma década de atraso em relação à congénere ocidentalidade. O domínio de outras geografias culturais e linguísticas em SFC permitem exercícios de alteridade que oferecem ao leitor súbitos movimentos de índole social, nomeadamente no que toca o papel da mulher e da sua sexualidade segundo os tempos que avançam com cada vez maior rapidez e que são distinção deste milénio. Em nenhum momento SFC indica na sua persona a necessidade de se masculinizar para caber como igual no centro da humanidade. São exemplares os versos em “A Ouvir o Mar da Cama”: “os relâmpagos afogados no rosto / a areia desdobrada sobre o útero “. Da mesma maneira surge o poema “Louboutin”, carregado destas referências de poder feminino, onde a autora faz recurso a um símbolo de distinção social, uma marca de sapatos com que constrói realidades difusas sobre este real poder. Uma mulher que pode optar por não se assumir através do seu poder monetário, mas sim do seu poder elegante e que o é seja na Louboutin, na Zara ou na China. É a mesma poeta que autorretrata a sua persona feminina a uma escala interplanetária em “Uma Poeta”, “deixa-me contar-te / a relação tenebrosa entre o olhar e o rosto / a beleza original dos escombros / escondida nos músculos dos planetas.”

Esta marca social vai-se diluindo no outro, apontando para questões cada vez mais fundamentais no exercício da liberdade do homem perante a sociedade dos mercados. “Dicas para Gente Despedida” é um poema que tem a força da voz singular de SFC perante a realidade que a rodeia e uma preocupação carinhosa para com o que lhe é alheio, “relativiza, acredita em ti / enquanto te embriagas até ao vómito / e pensa que o vómito é uma condição passageira, tal como / o estado de desemprego em que te encontras.” Existe alteridade nas próprias composições linguísticas quando depois de “Dicas para Gente Despedida” chega “Dicas para um Desempregado”, modificando um estado de ânimo entre um e outro poema; quando existe a realidade súbita do despedimento e a realidade passiva do desemprego. Indicando no primeiro segmentos de conforto e no segundo a descrição de um tempo que é difícil de se concretizar, de proceder até ao seu fim. Por antítese surge logo de seguida “A Semiótica do Sucesso” como se SFC tecesse o pano que fecha o seu palco poético por cada mudança de cena: “e o meu instinto é demasiado solto / na tua postura muito reta / na gravata inesperada aos trinta / toda a tua invisibilidade relata a semiótica do sucesso”. SFC mantém um outro diferente, um outro que é invisível enquanto pertence à sociedade trabalhadora, diferente daquele que é uma dimensão social visível (o desempregado) e aquele que já se confunde perante a normalidade social em que se insere.

De outras formas florescem as palavras, construindo pequenas dionísias em torno de uma persona inflamada de fogo, tratando-se de uma marca que corre todo este livro que compõe um outro capaz de suster esta respiração profunda e emotiva. Em “Se te Esperasse Dificilmente Vinhas” logo os primeiros versos indicam o profundo desalento de um estado amatório, “és do género fugitivo: / existência de pó / na proa de navios sem frota”. SFC consegue espelhar a ideia da invisibilidade deste outro que parece incorporar um humano que nunca estará presente devido à condição exagerada do poeta e da própria poesia. Mostrando a condição da própria musa, uma espécie de sonho em constante fuga entre todos os corpos que se podem suceder no outro. É exemplar “Queimo-me na Boca das Horas” nos seus versos: “lembro-me desse Dezembro doce, / da trovoada cardíaca / um perigo com sabor a vida e / uma nostalgia a arder nas sílabas das minhas lamentações”. O lado Fogo é intermitente em quase todos os poemas, capaz de encadear também todas as questões Terra sobre as quais SFC se debruça. “De Saltos Altos Felpudos”, SFC volta a caminhar no sentido de uma regeneração feminina, mas usando sempre o recurso de uma imagem que é violentamente apaixonada, “no meu ventre ditador / a guerra foge-me. / deixa-me fracassar / enquanto estás quente.”. Trata-se essencialmente de uma violência que é sensível, mas que nem por causa disso deixa de cumprir o seu programa estético negro: “quero esquecer todo este sangue que me amadureceu / entre a idade, / quero doar-te uma pálpebra / enquanto levanto uma palavra.” (“Um Eu Surrealista”). Nas propriedades do tipo de poesia Fogo é possível ver determinadas inflamações de índole patriótica e regional, como é o caso de “Portugal I” e “Portugal II”. Sendo que o primeiro poema é indicativo dessa característica nos seus versos, “ao acordar quero beber / as palavras derivadas da infância. / onde hastear esta bandeira de sardinhas e ameijoas / senão no coração”. Já o segundo poema, “Portugal II” é a outra faceta de um país que não se trata apenas de um lugar no coração, desenvolvendo-se no sentido de uma preocupação cívica e mais terrena: “comprei uma paisagem vazia / para condizer com a catástrofe. / a austeridade do silêncio / não reestruturou a minha vida.”

Como em qualquer um destes movimentos qualquer corpo estelar que esteja na sua órbita volta ao lugar de onde partiu, repetindo-se até à mais completa infinidade. As variações temáticas compõem a chegada de qualquer estação, mesmo quando surgem primaveras enevoadas e palavras sobre este mar que parece banhar a mente de SFC; trazendo-nos para ricas imagens contrastantes; muitas delas, súbitas, imersas, em acordo e em desacordo com a inevitabilidade das emoções, mas também da inevitabilidade do que escapa à mão da poeta e é já engrenagem universal funcionando como um automatismo. Sem que se lhe escape, no todo, a profunda ligação que mantém com o que é humano e que segue humano independentemente de ser central ou periférico, de se localizar dentro do coração ou em qualquer estrada longínqua.     

O Apodrecer Das Uvas



No canelho perto da igreja da terra, onde em tempos leitoras
Comiam carne regada a fino, alguém diz, este é aquele do livro,
Perguntam-me pelo deste ano e eu digo que capital, já não espero
Milagres de que não espera nada do santo que nunca fui,
Sinto-me mais em casa debaixo da figueira, com Moledo nas páginas
De um livro de digestão difícil, e se ninguém estiver a ver
Bebo uma lata de coca-cola e fecho os olhos enquanto engulo anos
E devolvo centímetro e desilusões e as crostas dos lábios
Contaminados pelos verões em que se gastou a inocência,
Só mais um bocadinho, só mais uma última vez e deixam de nos reconhecer
À primeira, os olhos procuram um lugar comum no rosto coberto pela
Vergonha que nos quiseram impingir como hóstias secas em manhãs de sede,
Se soubessem que apesar do tempo, dos anos multiplicados aos
Quilómetros, quando me sento no cimo daquela frada, sou todo eu,
Eu como se os joelhos esfolados do granito, eu como se as unhas
Ainda sujas de brincar na terra a construir cidades do futuro
Com as telhas meias podres de uma casa abandonada,
É aquele do livro, quando já seis e outro à espera de um ano imprevisto,
Eu quase que a dizer que não, que eu o garoto de cabelo queimado
Pelo Sol, que mora além, onde toda a gente se encontra quando fecho
Os olhos numa tarde quente de Agosto, ignorando o apodrecer das uvas.

Torre de Dona Chama

05.08.2015


João Bosco da Silva

sábado, 19 de março de 2016

talvez de Sidon

acabarão por chegar de algures, talvez de Sidon, talvez de Biblos
homens novos para cartografar a vida
virão notar que aqui encontra-se um homem que espia a solidão à distância 
ali uma mulher que confunde o espaço com o tempo e que por isso vê
no meio desta roda tantos homens que se esquecem de dançar
e sobre tudo isto nada dirão que se confunda no levante com o medo 
ou com a hesitação de quem nasce sem saber
dirão apenas que amor poderá ainda ser
uma praia em Gaza
ou que em Alexandria 
serenos matemáticos contemplam meio poema 
e concluem que o amor poderá ser resolvido 
com um minuto de geometria 
se aplicado a doentes terminais
em missão de abandono 
um estreito de terra e de mar acabará por ver chegar
outros homens que o encontrarão sem esforço 
e que perceberão durante alguns segundos
como esforço é tornar coincidentes as circunstâncias 
tudo coisas que chão e água se esforçam por fazer notar
nas anotações destes homens encontraremos as conclusões de sempre
em papel sulcado pelo tempo
tudo se perdeu 
e é esta a nossa sina
partir para de novo lembrar 
insistir com a vida 
com o só propósito de a cartografar 

quinta-feira, 17 de março de 2016

Mulher Duplicada



Hoje vi-te, estavas ao balcão a pedir uma cerveja, acompanhada
E eras tu, a forma como olhavas para ele era com me olhavas a mim,
Não era eu, os braços paralelos aos corpo com as luvas ainda calçadas,
Como quando tu esperavas, a bolsa do lado esquerdo, usadíssima
Como tu, mas não gasta, não sei se sorrias, imagino que sim, já que eras tu,
O cabelo de ferrugem, a pele de neve sempre com fome de verão,
Eras toda tu, então entregaram-te a cerveja, voltaste-te, olhaste para mim,
Através de mim e nos teus olhos não era eu, afinal tu, também não eras tu
E a tua sósia lá se foi sentar com o teu nariz, levando a cerveja toda séria,
Não suspeitando que o gajo de barba que olhou para ela como se a conhecesse,
Escrevia um poema sobre quem ela não era.

Turku

16.03.2016


João Bosco da Silva

quarta-feira, 16 de março de 2016

Diamante

de três em três horas sinto
uma picada de fome
que aguento estoicamente.
ao fim do dia corro sempre sete quilómetros.
tu dizes-me que só fui promovida por causa
dos saltos altos de verniz,
eu digo-te que tenho um doutoramento em
filosofia da linguagem e uma depressão.
tu conduzes sem travar
pelas curvas do meu corpo
eu multo-te
e subitamente transformas-te
num diamante.

Sara F. Costa

terça-feira, 15 de março de 2016

Os poemas sobre barcos


Talvez os textos mais perfeitos do nosso tempo estejam a ser escritos na nossa língua e falem do sepultamento dos navios, talvez só possamos falar sobre barcos, de países inteiros que se sentam à volta de uma mesa, de bandeiras que se abraçam.
Talvez só possamos falar de barcos numa cama, nas traseiras de um livro, com o Livro de Cesário Verde como mastro, vela e capitão do olhar, Guardador de Rebanhos todo sublinhado a verde - A minha pátria é a língua portuguesa e a minha família é o meu país – e talvez não haja Portugal, mas sim uma mistura ignóbil de "estrangeiros do interior" a governar-nos e a estropiar-nos o resto do que somos. (Pessoa, Carta a um herói estúpido) - Talvez esteja apenas cruel, frenético, exigente e não querer ver mais sofrimento em nenhuma cara do meu país seja a minha bandeira: bandeira imaterial de cor nenhuma, haste completa, cheia pelo vento quente como uma saia que abana lá em cima. Essa eu abano, com essa eu celebro, a essa eu bebo, essa eu abraço no tempo certo e não deixo cair.


Nuno Brito.

segunda-feira, 14 de março de 2016

Dissecação Dos Ecos



Em cada nova boca encontrava um eco cada vez mais diluído
Da verdade que foram os teus lábios de sonho
E vinha-me com a certeza e a vontade do vazio
E sentia que me engoliam sem qualquer magia,
Como se fosse um reflexo esculpido pelo hábito
Da obrigação, os batons rodeavam-me, anónimos e diversos,
Contudo sinceros no toque e com um brilho parecido ao desejo
No olhar, mas um desejo que se pede, mais do que rói por dentro
E no fim cede-se a um convite para tomar chá, já que o vinho
Perdeu o sabor, a vodka se enjoou há anos numa ilha
Que acabou por se tornar no modelo do purgatório
E não é sede, não há sede, só uma solidão que apaga
Aos poucos com os ecos diluídos que se encontram nas bocas
Que te sucederam, todos aqueles verões de saliva
E uma ordem de marfim forçado, cada vez mais pálidos perante
O esquecimento.

Turku

14.03.2016


João Bosco da Silva



domingo, 13 de março de 2016

Teoria para a Felicidade

Que mais se pode querer da vida,
quando a vida é o único lugar
onde o sonho se concretiza;
se a margem de azar se sobrevaloriza
se na transação ficou mais do que devia,
que importa o capitalismo
quando a pior bancarrota
vive dentro de um homem.

Se um homem se distraí e sonha
sonhos que não são seus,
se um homem vai atrás de
uma mulher que nunca será sua.
Quando fica preso às coisas que nunca foram,
à mãe que nunca houve
ao teto que faltou,
quando sucumbe perante
a sua própria desgraça
e é quem sente a maior pena
de tudo que nunca foi.

Que mais pode querer um homem
da vida, quando o homem cega
e constrói um teto pequeno demais;
quando quer ser cego
até quando se lhe pinga
qualquer cura
para dentro do seu olhar.

terça-feira, 8 de março de 2016

Jesus, o Carpinteiro


Conheci Jesus numa noite longa,
atravessando anos de melancolia
como a cruz,
uma cruz feita pela minha mão.
Debrucei-me sobre ela
como se fosse o meu melhor poema
e Ele olhou para mim, eu era
a miúda que se sentava sozinha;
por isso deitou conversa
contando-me que era carpinteiro,
em como a sua cruz, mesmo assim,
era mais confortável do que a minha:
queria um beijo para se consolar,
mas entendeu que nenhum beijo
poderia acalmar as estruturas que me prendem;
grandes construções poéticas
que cedem perante o martírio.

Cada carinho é um prego a menos,
cada prego a menos e a cruz
já mal-amanhada e vai deixar-me cair.
Vou-me pelo abismo de descer
tecendo mais placas de madeira
e muitos poemas sobre
o que deixei por soldar:
o seu rosto humano próximo do meu;
uma cruz bem atarracada ao chão
e no seu alto
a humanidade inteira intercedendo
pelo beijo com que minto às escuras:
pegando em talhas de fonemas
para inventar o físico de Jesus
e o sabor metálico
de uma boca já em sangue
de tantas, demasiadas mulheres sós. 

segunda-feira, 7 de março de 2016

Lançamento do livro "O Movimento Impróprio do Mundo" de Sara F. Costa



Sara F. Costa ganhou pela terceira vez o Prémio Literário João da Silva Correia mas há muito mais nela do que poesia. A jovem de 28 anos, licenciada em Línguas e Culturas Orientais, é intérprete e consultora de investimento chinês em Portugal. Vive e trabalha em Lisboa, onde também se dedica ao estudo das Relações Internacionais, área onde se encontra a tirar doutoramento e onde analisa o diálogo intercultural, questões identitárias, análise histórica, diplomática e política externa. Ao labor, fala da sua escrita, dos interesses académicos e das saudades de S. João da Madeira

LABOR: Como descreveria “O Movimento Impróprio do Mundo” em relação às duas obras anteriormente galardoadas: “O Sono Extenso” e “Uma Devastação Inteligente”?

Sara F. Costa: Cada um dos meus livros é o reflexo de um percurso. Por um lado, o percurso existencial. Por outro, há uma exploração da plasticidade da palavra, um permanente exercício de alteridade, uma evocação dos outros que me habitam. Como diria Rimbaud, “je suis un autre”. É nesta encarnação permanente do alheio que procuro traçar um percurso que se tem vindo a desenvolver em termos de maturação pessoal e literária. Recordo-me que, tanto no meu primeiro livro “A melancolia das mãos” que editei com 15 anos, como no segundo “Uma devastação inteligente” editado aos 19, era uma adolescente mais ou menos assustada com isto tudo que é viver e deixar de viver, são livros com tonalidades mais melancólicas e ansiedades pulsantes. Não é que não exista melancolia em “O Sono Extenso” ou “O Movimento Impróprio do Mundo” mas admito que passei a incorporar uma dimensão mais social, ainda que mantendo sempre a dimensão psicológica e sobretudo emocional. É difícil a autora analisar a sua própria obra, mas reconheço o meu fascínio pela vertente plástica e visual da poesia, a criação de imagens sensoriais, a captação do instante de inspiração simbolista e surrealista, o recurso à sinestesia e abstração em detrimento da narrativa ou o esboçar de narrativas não figurativas.


L:Que comentário lhe merece este triplo reconhecimento pelo Prémio Literário João da Silva Correia?
SFC: Eu escrevo de forma espontânea e sem um deadline ou um compromisso de publicação. O máximo que faço é enviar trabalhos para Prémios Literários. Este triplo reconhecimento vem confirmar algo de que sempre estive certa, a aposta que a Câmara Municipal de S. João da Madeira faz no apoio às artes e à cultura. Tenho que agradecer aos júris do prémio, todos personalidades de grande idoneidade intelectual e que muito me honram com a sua decisão. É também uma honra ter o meu nome associado desta forma ao grande João da Silva Correia, cuja obra-prima “Unhas Negras” faz sem dúvida parte dos meus livros favoritos. Espero que a escrita deste autor continue a ter divulgação na contemporaneidade e se eu fizer de alguma forma parte dessa divulgação, sinto que é algo de muito nobre.


L: Além destas três obras, que outra produção sua destacaria? O que a inspira, o que a aflige, sobre o quê gosta de escrever?
SFC: Divido-me entre a escrita criativa e a escrita académica ou científica. O que eu envio para ser analisado, por exemplo, em prémios literários é aquilo que para mim atinge um certo valor artístico. Em termos de produção artística, não destacaria mais nada para além daquilo que tenho publicado. Tenho escrito vários artigos científicos relacionados com a área de investigação na qual me encontro a tirar doutoramento, que é a área das Relações Internacionais, onde gosto de escrever sobre o diálogo intercultural, questões identitárias, análise histórica, diplomática, análise de política externa. A minha especialização geográfica é a China. O comportamento humano inspira-me bastante. Tanto na sua dimensão micro como macro, ou seja, tanto a nível psicológico como a nível social. Digamos que se eu fosse fotógrafa ou pintora, tenderia a fazer retratos. Interessa-me a ética da mesma forma que me interessa a cidadania e consequentemente a política. Participo ativamente na sociedade civil e muitas das minhas inquietações advêm de análises e reflexões de cariz social, os modelos económicos e ecológicos da nossa contemporaneidade, a violência e a conflitualidade, a reflexão sobre os modelos vigentes e os modelos que seriam desejáveis, o que os distancia e o que pode ser feito para lá chegar.


L: S. João da Madeira, cidade essencialmente industrial, tentou-se afirmar na poesia com a organização da campanha Poesia à Mesa. Tem acompanhado o evento?
SFC: Tenho acompanhado o evento na medida do possível. Quando era adolescente era uma semana de grande entusiasmo. Quando fui estudar para Braga e depois trabalhei em diversos pontos do país, deixei de ter tanta facilidade em participar no evento, com muita pena minha. O facto de S. João da Madeira ser uma cidade industrial só pode fomentar a criatividade, como fomentou ao próprio João da Silva Correia. Como sou uma escritora que se interessa muito pelas dimensões humanas e sociais, acho que é perfeitamente normal que muitos artistas se tenham inspirado na industrialização para a sua arte.


L: Sabemos que se licenciou em Línguas e Culturas Orientais e que passou algum tempo na China. Fale-nos dessa experiência, do que faz atualmente e se esse conhecimento se reflete de alguma forma na sua produção artística.
SFC: Parte do meu mestrado foi passado na cidade de Tianjin na China, onde aprofundei conhecimentos de mandarim. Já lecionei mandarim e português como língua estrangeira. Atualmente sou consultora de investimento chinês em Portugal. Também sou intérprete. Naturalmente que esta vontade de perspetivar o mundo em diferentes posicionamentos se relaciona com o meu fascínio pela Ásia da mesma forma que se relaciona com o meu fascínio pela arte, penso que tudo faz parte de uma experiência integrada.


L: Deve saber também que nas escolas primárias de S. João da Madeira ensina-se atualmente o Mandarim. Como avalia esta opção?
SFC: Sei sim. Acho que é algo louvável, de grande visão. O multilinguismo é de extrema importância e o mandarim é a língua mais falada no mundo e a República Popular da China encontra-se, nas várias dimensões do poder, a desafiar a ordem do sistema internacional pelo que há imensos motivos para se estudar esta língua neste momento.


L: Vem a S. João da Madeira com frequência?
SFC: Venho com uma periocidade mais ou menos mensal. Visito a minha família em Cucujães e os meus amigos e outros familiares espalhados por S. João da Madeira, Oliveira de Azeméis e Santa Maria da Feira. Tenho sempre saudades de S. João da Madeira porque me lembra os tempos da adolescência, das longas horas passadas em cafés e na biblioteca a ler e a escrever e nos bares a divertir-me com os meus amigos.



Vencedora de três prémios


A escritora de Cucujães Sara F. Costa voltou a vencer o Prémio Literário João da Silva Correia. É a terceira vez que é distinguida, desta vez com a obra “O Movimento Impróprio do Mundo”.
O Prémio Literário João da Silva Correia, cuja edição de 2015 foi dedicada à Poesia, é atribuído pela Câmara Municipal de S. João da Madeira e traduz-se num apoio monetário à publicação do título escolhido pelo júri, até ao montante máximo de 2.000 euros.
Em “O Movimento Impróprio do Mundo”, segundo o júri do concurso, a autora “apresenta uma escrita fluida e ampletiva, tonalizada com algum humor, aparentemente simples, mas trabalhada e consistente. Abordando temáticas atuais e referências a símbolos identitários nacionais, o livro premiado contém um conjunto de poemas que desenvolvem uma reflexão poética intensa e envolvente em torno do quotidiano do próprio poeta, transportando o leitor para universos marcadamente pessoalizados”.
Sara F. Costa, escritora e poetisa, venceu este concurso literário em 2007 com a obra “Uma Devastação Inteligente” e em 2011 com “O Sono Extenso”.
O júri é atualmente constituído pela representante do Município de S. João da Madeira, Suzana Menezes, pelo representante da Âncora Editora, António Baptista Lopes, e pelo poeta José Fanha.
Licenciada em Línguas e Culturas Orientais pela Universidade do Minho, Sara F. Costa esteve dois anos em Tianjin, na China, onde expandiu os seus conhecimentos de Mandarim. Fez um mestrado em Estudos Interculturais: Português/Chinês: tradução, formação e cultura empresarial e está atualmente a fazer um doutoramento em Relações Internacionais na Universidade Nova de Lisboa.
Foi leitora nas universidades de Braga e Tianjin, professora de Português como Língua Estrangeira e professora assistente convidada da licenciatura em Tradução e Interpretação (Português/Chinês – Chinês/Português) no Instituto Politécnico de Leiria. Foi ainda Relações Públicas e é atualmente tradutora/intérprete e consultora de investimento chinês em Portugal.
Tem várias publicações académicas, onde refuta a tese da paz pelo comércio partindo do exemplo da Guerra do Ópio, analisa o intervencionismo da ONU e a importância da tradução nas redes de informação contemporâneas.


Carta a Charles Manson (revisto, republicado e opinado)

I

Um quarto perdido numa cidade qualquer,
14 de Maio de 2009.

Hoje voltei a cruzar-me na rua com o cadáver;
não tive a mínima intenção de lhe acenar
um bom dia que seja. Os seus olhos brilhavam
através do lixo remexido. As suas mãos eram as mesmas
que as dos rastejantes brancos em quilos e quilos
de banana apodrecida.

Anda como um cão, farejando o cio da pobreza,
largado em contentores de take-away.
Nas veias corre-lhe o fumo de filas intermináveis
de escapes de automóveis; Coágulos brancos
de celulite e gordura animal,
iludidos na pigmentação rouge
dos holofotes da tua Sharon Tate
esteticamente correcta.

O cadáver atravessou uma avenida inteira,
um campo de concentração democrático
para me cumprimentar.Tinha o hálito
putrefacto da humanidade,
disfarçado no aroma do whiskey
que bebi a mais na noite passada.

Acendeu-me mais um cigarro,
que me soube-me ao travo da gasolina
de um Zippo descaracterizado:
perguntando-me pela vida.

A sua voz era a inconfundível euforia
dos anúncios publicitários
e dos pregadores de Iavé,
ocultando o grito imensurável
da estranha dor que é nascer,
para que seja mais um monte de carne
diretamente para o matadouro.

Ocasionalmente tossia aquele sangue,
sujando o meu imaculado vestido branco,
aludindo à minha virgindade perdida
na pornografia dos bons costumes.

Por certo não foste tu que mataste.
As tuas degoladas na Sharon,
tiveram só o defeito de serem psicóticas.

Contei-lhe que estamos
no tempo da fruta madura.
Falei-lhe da Haute Couture
patrocinada por uma cultura
de orientais à beira do suicídio
e ele abria a boca para se rir
exibindo os dentes negros
quentes de sujidade.

Homens calvos lambem o asfalto.
O mesmo asfalto das ratazanas,
da sostrice da corrupção,
agarrando à língua
frases feitas em rigor mortis.

Acabei por lhe falar da Helter Skelter
e ele olhou para o sol.

Levantou-se enquanto expressava
preferência pela Can’t Buy Me Love,
beijando-me a boca para se despedir.

No ar ficou o cheiro dos perfumes rançosos
e reprodução em massa praticada nos esgotos.
Na boca ficara, apenas, o gosto do desalento.

Sei que o ouves da tua jaula
a fazer barulho na canalização,
como se pingasse uma menarca.

Diria que são saudades do tempo
em que ainda cantavas baladas.

Não te pergunto pelos parentes
nesta longa carta,
sei que não estás só.

Saudades,
L.



II


"A 14 de Maio de 2009 decidi escrever um poema que, no entanto, sempre se tratou de uma carta. Uma tentativa de fazer chegar algumas palavras a um homem que ainda hoje, acredito que tenha um certo espirito. Um espirito obscurecido como aquele em que se me soltaram palavras num poema. Nessa altura ainda não lhe conhecia as suas obras artísticas, nomeadamente as que são música. Foi apenas no decurso de 2016, mais exatamente na passagem de ano novo de 2015 para 2016, que a amiga Helena, pôs algumas das suas baladas a tocar. Graças à tecnologia que temos disponível hoje em dia, mas só até certo ponto, podemos localizar ainda certas censuras. Como seria difícil, noutra festa qualquer há uma década atrás, escutar tão bem essa música impregnada do ritmo alegre dos anos 60, na voz daquele que é considerado um homem mau. Charles Manson não se limitou a matar, Charles Mason encantou e manipulou para que alguém o fizesse por ele. Ainda hoje se afirma um homem inocente.

Em 2009 era esse o tipo de homem que também me encantava. Deparar-me em 2016 que o homem é capaz de fazer arte tão distante de si mesmo. Ou haveria alguma coisa que denunciava Charles Manson já na sua música? Talvez tenha sido no momento em que fez a sua família finalmente, em que deixou a solidão em que sempre estivera – talvez tenha sido ai que as coisas se descompuseram. Ele próprio ganhou um certo ódio aos miúdos ocos que o seguiam para todo o lado e onde quer que fosse. Deixaram-se encantar, tal como o povo alemão se deixou encantar por Hitler. Não há como deitar as culpas a Charles Manson, o homem que viveu institucionalizado uma vida inteira, nem aos miúdos, produto da sociedade em que cresceram. Prenderam o homem porque tiveram medo que ele conseguisse engatar uma plateia? Prendam o Donald Trump também. Ao menos o Charles fazia música bonita.

Tenho passado tanto tempo encantada com esta figura que hoje em dia custa muito em parecer humana. Diria que o Charles é o exemplo perfeito da sobrevivência durante o encarceramento. Alegrou-se com o seu destino, tornando-se mais imbecil do que já era. (Digo imbecil enquanto alguém que se faz deliberadamente de estúpido).  Às vezes é mesmo o melhor a fazer, principalmente quando cansa dar pérolas a porcos. Talvez seja essa a razão pela qual cultivo em segredo um serial killer. Que se torna a cada dia que passa num fetishe literário. Com uma enorme vontade de poder fazer-lhe chegar algum tipo de conforto. Talvez a história da sua própria vida, vista pelos olhos de alguém que se limitou em fazer por ouvir falar.  Ou algo que nada tenha a ver com esta figura, mas sim com o seu espirito."


Excerto



Estendal de Sonhos

Ouço-me a sonhar através da janela,
a janela onde a minha mãe se sentava a tricotar.
A janela que deita para a noite
os cortinados por tapar
o corpo que se vai despedindo do dia.
Vê o vizinho o corpo desnudo
ganhando curiosidade pela poesia feminina:
A Janela onde se acaba a minha mão
e começa o Inverno
cá dentro - deitada para uma fantasia
que deixou de ser suicida e agora
é só fantasmagoria de um amor esquecido:
pronto para se deitar à rua
como a beata de um cigarro
atirada ao Universo.
O corpo que alguém apanha
para fumar o caramelo, para sorver
o cheiro dos cabelos em flor:
todo o fio que já não tem vida,
mas que ainda é belo e informa
a possibilidade de uma paixão
na cabeça distante de uma janela.

quinta-feira, 3 de março de 2016

Seres


"Vejo ao fundo de tudo o âmago do silêncio. Silêncios que a espaços me vão interrompendo o cantar contínuo que vive cá dentro. O cantar com que embalo todos os pensamentos que não digo em voz alta, nem se me escorrem por outros gestos. No silêncio de quando não canto cá dentro sou capaz de ouvir a respiração de uma árvore Pinus longaeva. Está algures nesta dimensão, neste planeta, completamente cercada de um lugar que a natureza invadiu só para si. Nenhum homem saberá ao certo quem é esta árvore em concreto. Nem eu, que sou capaz de a ouvir no silêncio do silêncio, sei da sua geografia. Ouço acerca do momento em que foi colocado o espirito num dos muitos animais que desde sempre ali estariam habitando. No céu o sol dançou durante muito tempo. As Auroras Boreais eram visíveis em qualquer noite, em qualquer ponto deste planeta. O sol dançou como voltou a dançar por diversas vezes. Tantas quantas foram necessárias.

Quanto mais pequeno o animal é maior tendência ele tem em deslocar-se rapidamente, construindo em segundos uma Civilização. Num modelo muito parecido ao dos seres perfeitos que nos visitam de vez em quando. A sua lei é a lei que rege o resto de todas as figuras celestes que parecem animicamente inertes. As nossas leis, os nossos tribunais, o arrasto de uma justiça cega – é tudo exatamente da mesma forma. A árvore falou-me acerca de uma guerra interminável entre aquilo que somos animais e aquilo que somos espirito. Foi assim que começaram todas as guerras entre os homens. Em especial esta última, pela qual temeu a todo o instante. E pela qual continuará a chorar o desaparecimento de certas naturezas que ao principio, ainda pertenciam àquela dimensão única.

Ouço uma árvore a chorar no silêncio do silêncio, confundindo as suas lágrimas com aquelas que caiem sobre esta folha. A árvore conta que outra árvore lhe contou que um homem iluminado, mas temente do dogma, tinha sido esfaqueado no lugar em que o sol também dançou – um sol incapaz de todas as violências; porque violência é da própria natureza deste lugar no Universo. Os animais alimentam-se uns dos outros, inclusive os animais humanos que cedem sempre na sua biologia mais primária: aquela que existia ante de lhes se colocado o espirito. A violência é o dado mais antigo que nos protegia dos animais maiores. Agora, já nada disso é necessário – apesar dessa ligação primária se parecer com o conforto do ventre materno. Por isso continuamos a não querer resistir, a ser capazes de aproximar os polos mais distantes. Entre o ódio e a paixão não existe qualquer diferença, pois também é primário o dever de preservar a espécie. Um dia chegou o espirito que fez por confundir todas estas coisas; para certas sensibilidades trata-se de um caos que é gerador de mais caos: barulhos subterrâneos, cidades inteiras despertas pela noite, luzes alheias à natureza, multiplicadas através do inventor, aquele que se coloca ao serviço da criação em razão do amor; mais que não seja, pela única companhia que às vezes só o espirito proporciona. Amor a essa metade que surgiu e da qual ninguém tem memória. A única coisa que os seres deixaram nesta dimensão foi isso mesmo: a metade que não é animal."

Excerto


Poema Sinalético


Proíbo-me de escrever poesia
de escancarar no leitor
a violência que ele
me provoca.

Proíbo-me também dos beijos furtivos,
de deixar poesia numa boca violenta
que só dirá silêncios.

Proíbo-me, porque ando a ler
e ler demais faz mal à ignorância;
um artigo dizia que era isto
que fazia adoecer.

Proíbo-me de olhar para o abismo
e de brincar com ele
como se fossem palavras
num poema.

Proíbo-me até quando dá prazer
e se parece com um sonho de infância:
um poema escrito para
a minha mãe.

Será que se perdeu
ou se confunde com tudo
o que a minha mão tende
a proibir?

Proibir-me-ia algum dia
desta fantasia infinita?

Águas-furtadas

(Desde menina que desejei viver
Num oásis isolado do resto do mundo…
Um lugar especial, inteiramente meu,
Em que a enormidade do manto do céu
Me engula na sua garganta sem fundo,
Até me encontrar e me tornar a perder.)

Aqueles que caminham pelas estradas
Pousam os olhos no chão que pisam,
O meu olhar curioso erguia-se ao alto,
Mais alto que o cimento e o asfalto,
E visava o que outros olhares não visam
Nas suas visões rotineiras, agrilhoadas…

Não temo o silêncio nem a solidão,
Não são as ideias a que me confino,
Os meus receios são barcos passageiros
Que trazem a fúria de mil marinheiros…
Mas este local que, para mim, imagino
Ergue-se sobre toda essa negridão.

Um local para admirar as manhãs alvas,
Em que a máquina mundana não me viole,
E poder olhar as nuvens encasteladas
No meu canto, nestas águas-furtadas,
Com os seus parapeitos beijados pelo sol
Perfumados pelo desabrochar das malvas.


Ana Caeiro

A Música de Tiago Sousa




Tiago Sousa, músico e poeta da Terra (porque não se tratam de simples dionísias), com um programa estético extremamente sensível, mas acutilante. Cheio de referências clássicas, principalmente do minimalismo ousado de certos compositores, como é de revelar o exemplo de Erik Satie. Da mesma forma a sua música ganha contornos rebeldes e que pretendem estender-se à quebra da regra clássica, tanto na forma de fazer música como também no pensamento contemporâneo. Pois a sua música é certamente marcada pelo "bom uso" do silêncio, a antítese da música de massas - que invade o ouvido em qualquer lugar, ditando o seu consumo e que está em oposição á Arte que se mantém e prova algo de novo socialmente. Arte que se encontra a lutar contra esta antítese que se serve a perenidade, da "beleza" do mau gosto (Umberto Eco) e pretende formatar levianas mentes para o sentido do "não-pensamento" e por consequência compactuando passivamente com o lado moeda do sistema em que vivemos.

Nas suas próprias palavras “Tocar piano não é uma mera actividade de autoentretenimento. Não é uma ocupação vaga. Afectará as nossas vidas ao ponto da transformação absoluta da existência*".

A música, quando tocada, funciona já como uma ligação ao mundo, pois preenche espaçadamente o silêncio. Nunca é inócua, nem numa sala vazia; e aqui reside a importância de olhar para o presente e avaliar a música que é continuidade e não aquela que se desmancha num "one hit wonder", que dura nos canais de distribuição quase ao ponto de uma cega paixão que morrerá no Verão seguinte. Trata-se da importância de desenlaçar entre o consumo e a fruição da permanência, dotando novos valores àquilo que nos apresentam dizendo tratar-se de "Música"; (música muito em especial por ser o elemento das artes mais fácil de distribuir ou canalizar). Em como pode ser usada para educar e formar espíritos, mas como não é isso que se pretende - e agora só um apontamento: até nas próprias políticas de ensino portuguesas - sem saberem como a harmonia a fazer sentido na cabeça de uma criança, equivale a tornar o seu pensamento mais capaz para a lógica e matemática. Equivale a produzir música que conduzirá a experiências estéticas mais profundas e geradoras de real mudança.

* Trecho de “Lições emancipatórias da técnica pianista”, Tiago Sousa.

Poderão acompanhar aqui a obra de Tiago Sousa

quarta-feira, 2 de março de 2016

Sede


Obra de Remedios Varo

Teoria das Cores

Era uma vez um pintor que tinha um aquário e, dentro do aquário, um peixe encarnado. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor encarnada, quando a certa altura começou a tornar-se negro a partir – digamos – de dentro. Era um nó negro por detrás da cor vermelha e que, insidioso, se desenvolvia para fora, alastrando-se e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário, o pintor assistia surpreendido à chegada do novo peixe.

O problema do artista era este: obrigad...o a interromper o quadro que pintava e onde estava a aparecer o vermelho do seu peixe, não sabia agora o que fazer da cor preta que o peixe lhe ensinava. Assim, os elementos do problema constituíam-se n a própria observação dos factos e punham-se por uma ordem, a saber: 1º. – peixe, cor vermelha, pintor, em que a cor vermelha era o nexo estabelecido entre o peixe e o quadro, através do pintor; 2º. – peixe, cor preta, pintor, em que a cor preta formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor.

Ao meditar acerca das razões por que o peixe mudara de cor precisamente na hora em que o pintor assentava na sua fidelidade, ele pensou que, lá de dentro do aquário, o peixe, realizando o seu número de prestidigitação, pretendia fazer notar que existia apenas uma lei que abrange tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Essa lei seria a metamorfose. Compreendida a nova espécie de fidelidade, o artista pintou na sua tela um peixe amarelo.

HERBERTO HELDER

terça-feira, 1 de março de 2016

Origem da Música

"Tinha lhe sido dado o poder de encadear os céus. Fazia dançar sóis e iluminava espetacularmente todas as noites. Mostrava essa maravilha à pequena macaca – mas sentia a cada ano que passava naquele lugar, a grande tristeza de ter perdido uma filha. A macaca com o tempo passou a admirar ainda mais a beleza dos céus, até quando o seu invisível dono ficava melancólico e as noites voltavam a ser noites; e o sol alumiava da mesma forma como o dia de hoje. Também a macaca se entristecia por ele e foi mais ou menos assim, quase sem querer, que um ser afetuoso inculcou um espirito naquela macaca. Depois o Rei, cuja sabedoria era a bondade, decidia que não se podia deixar estar assim, porque a macaca já se afeiçoara demais e chorava quando ele também chorava. Voltava a implodir os céus com maravilhas nunca antes vistas, ensinando-a a bater pedras como se fossem tambores, dançando deslumbrada com a harmonia – e pela primeira vez na cabeça desta macaca se fez música."

Excerto

Sobre Paisagem Suplente


Contava-se muito acerca das viagens que ficaram por fazer. Pisar uma certa terra estrangeira para lhe encontrar algo de novo, sem saber que na verdade se tratava de uma familiaridade. Só se vai realmente quando o espirito vai também; a esse espirito, capaz de experiência estética, pode ir tanto quanto queira a própria criação. Quanto queira outro homem assumir uma persona explorando-se através dela – fazendo confundir um traço de personalidade na poesia ou uma experiência universal com a ficção. Talhar nestas palavras é já um ato heurístico, o primeiro ato heurístico numa viagem que se quer começar – onde importa mais a nave espacial que nos conduzirá do que a Lua a onde chegaremos. Onde importa reformular, voltar a ler livros que já foram lidos e músicas que serão sempre um padrão matemático repetindo-se até à infinita exaustão.
Uma viagem que parte sempre para um Novo Mundo, explorando com o espirito a sua própria existência. O afeto que decorre da interrogação da existência suplanta todos os lugares a que o corpo não pode ir. Só assim nos pode ser permitido criar algo, quando existe pela vida, onde viajamos, o afeto pelo tempo presente em que decorre. Só com esse exagero pela vida somos capazes de nos parecer um pouco mais com o divino e tendermos à criação.  Seremos capazes de traçar as paisagens, inclusive aquelas que ainda não vimos, às quais ainda não chegámos e provavelmente serão só uma experiência estética única – como são certos modos num povo estrangeiro. Tudo o resto é uma esperança ténue de que essa memória não se apague; e que não se apague porque é Arte e pode conter alguma verdade – como um presságio para um movimento que teime em procurar dentro de certas gramáticas a possibilidade de lhes sermos rebeldes - e através da Arte agir contra o que está erroneamente instituído.
Neste lugar em especial, uma paisagem com vista para a Literatura, Música, Belas Artes, Cinema e Filosofia da Estética - assim como a difusão de trabalhos académicos que versem sobre as Humanidades e demais Ciências Sociais, capazes de descodificar o corpo da criação artística.  A possibilidade de escrever, traçar um risco ou encadear uma sequência de acordes – que serão sempre familiares a qualquer coisa. Criações que, uma vez terminadas, são finalmente uma terra estrangeira; uma paisagem suplente de todos os lugares que já fomos e ainda estamos para ser.