terça-feira, 28 de junho de 2016

Nefasto

Corre por mim, dentro de mim, um pensamento atrás do outro
ambos quebrados, cansados da tirania da paz doméstica
sempre atrás de um final espetacular: do pano que desce
na tragédia inventada sem aplausos, sem beijo que desperte
ou braço pousado que me invente outra mulher.
Sou uma dor noutra palavra - a que se escreve na inconsciência
assolando de feio todos os restos de versos;
nem há como pronunciar a ineficácia de toda a poesia:
um desespero rápido na mão tingida a sépia
aperta a coroa de Cristo até que seja picada de rosa
e uma gota deste sangue sobre a boca de quem a declame.
SOU! o espaço em branco que promete a beleza visual
do texto arquitecto de toda a Literatura:
um pequeno deus farto do silêncio das coisas desnecessárias,
do que se escreve e nem é mentira nem verdade nem forma
cujo sumo embriaga o detalhe cego da virtude.
Sou e corro sem fim cheia de um nada que preenche
pensamento atrás de pensamento, palavras-paranóia de gente inexistente
todos dentro de mim, dançando na minha cabeça
um ruído de música que parece a companhia de outrora
tudo o que eu só sou na presença de mim:
pequenos instantes iluminados à sombra do impronunciável
falsas revelações geniais de omnipotências induzidas.

sexta-feira, 17 de junho de 2016

Espelhado


A vida prepara o poema no intervalo do tesão
entre o entusiamo e o dissabor acaba-se qualquer Verão,
alguém que se veio e nunca mais voltou
um herói que levava pela mão, fugiu-me como um balão.
Vi-lhe ao largo a textura do monocromático
fingi que era eu de um lugar já desconhecido,
uma gaja sorrindo para o espelho, para o peito
para a curva que faz dançar
mil encantos demoníacos no soçobrar.
Um carinho inofensivo no rosto
parapeito de nenhures de um desgosto.
É essa mão no vidro com que me tocas
um sorriso dentro de Narciso, beijos árduos
na boca partida das miragens.
Foram demasiadas as viagens paradas
um encanto de paisagem: nós dois e as drogas
quase que parecia felicidade a côr do céu
milhões de chapadas à toa em cima do amor
deitado, drufando,
sem dar de si até à manhã seguinte,
acordou enregelado da beleza pedinte
dela e do rosto do tempo que me é
que se veio e nunca mais voltou

quarta-feira, 15 de junho de 2016

O Desenhador de Sóis XX


O poema ensina o seu coração, o seu batimento, ele é muitas cidades a arderem em desejo; há no centro do poema um sol que irradia para todos os lados, uma afirmação de vida, uma múltipla fonte de luz. As palavras são centros de vibração, elas tocam-se, expandem-se em ondas, elas são estrelas em pleno nascimento, em nascimento continuo, cada olhar sobre elas as faz renascer. O poema é uma constelação que faz acender a linguagem, que a faz viver; A constelação que é o poema faz nascer a palavra a cada segundo, a cada batimento do coração a palavra é nova, ela tem novo sopro, ela é uma nova afirmação de vida, uma nova fonte, uma nova onda expansiva, a cada batimento do coração do poema surge um novo acendimento, (muitas cidades a arderem em desejo), a estação de serviço em mercúrio, o olhar da minha filha. Cada novo olhar sobre o poema cria um novo nascimento, uma aceleração diferente: eu acelero o poema quando o olho, eu o faço nascer. O poema é um animal invencível, ele é a vitória da linguagem. Quando eu afirmo:

O poema ensina o seu coração
e o seu coração é um céu azul.

Eu digo que esse coração é um núcleo que acende tudo o que o rodeia; o poema não pergunta o que é o fogo, ele afirma, ele cria uma comunidade, ele une, ele não para nunca de unir. As constelações comunicam, acendem-se, dançam, cruzam os seus fogos, a sua dança pode ser perfeita e - por essa mesma possibilidade - ela é já perfeita. O animal invencível é a possibilidade mesma da vida, a afirmação mesma da vida. Se o poema nasce em frente a um promontório com Safo ou se ele nasce no meio da rua com Cesário Verde, o que os une é esse nascimento, o mesmo batimento que implica diferentes vibrações, o mesmo início, que implica diferentes processos. O poema ensina a cair no chão ou ensina a rir dessa queda, o poema ensina a ver o outro mas também a ser sempre outro, doutra forma diríamos: o poema faz nascer, o poema faz brotar, o poema multiplica ângulos e nisso é tão humilde como uma raiz ou um semente que leva a vida no seu interior e que só necessita um pouco de água, um pouco de terra, um pouco de luz, uma comunicação (que é também assonância e conversa) da natureza. Tudo aqui é soma, tudo aqui é mudança, acrescento, comunicação, comunhão; união enfim, é disso que falamos quando falamos de poesia, de um abraço com uma geração intemporal, de um abraço com Orfeu, de um abraço com Diógenes; este é o contacto que a poesia inaugura, um gesto que se pretende infinito, um mergulho, um abraço, nisso a poesia parece-se muito ao ato de nadar, de atravessar, de romper, quando escrevo um poema atravesso o teu peito a nada e isso é a minha comunhão, o momento de erguer a cabeça e continuar a olhar o chão, aquele momento de acendimento que se dá antes das grandes viagens. O poema antecede a viagem. Ele dá-se num mergulho de luz, num momento de celebração, de encontro (com o todo e com o mínimo), com a flor que rompe o asfalto, com um mundo que se afirma quando o afirmamos. Este é o mundo, resta celebrá-lo, bendizê-lo, elevá-lo, acendê-lo, esse é o momento poético, o momento de criação de ênfase.

Nuno Brito.

domingo, 12 de junho de 2016

Cuidado com a mulher escondida atrás da porta

Traz um punhado de beijos com uma despedida
de há muitas Eras
quando o barro segurava cerveja quente
a electricidade ainda não iluminava o rosto do demónio
e as pessoas demoravam-se mais umas nas outras.

Anda cá dentro às conversas interiores
a voz está fragmentada há muita vidas,
foi absolvida, mas não foi esquecida
e só o sussurro da ternura lhe parece silêncio.

Dizem que enlouqueceu por amor
perdeu o olhar dentro de uma carruagem
um comboio sem-fim fora dos carris
cortando-lhe ao meio a essência.

Um pássaro fugiu-lhe para muito longe
e ela finje que morreu
só a memória do seu piar a anima
de todos os fulgures de um Verão.

sábado, 4 de junho de 2016

Palavras ao Mar

Tentei todas as proas, todos os barcos na travessia do sul.
O mar deteve-se sempre no mesmo lugar, dentro de um copo de água.
Sorvo como se fosse cerveja gelada numa tarde de verão.
Um fim carinhoso, de levar todos os oceanos à frente
e cair, rodopiando, num destino cada vez mais salgado.
Capaz de confundir uma lágrima na boca amada
dilacerada no silêncio da boca fechada.
É profundidade do escafandro silencioso
cheio de todas as palavras invisíveis
guardadas dentro da garrafa de vidro:
uma mensagem impossível de chegar
lida a bem querer por um rapaz deitado no areal.
Uma carta de amor para qualquer um.
O destinatário num mergulho errado
impossível de tragar num sopro afogado.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Buraco Negro


É muito peso, todos os nomes, aqueles sorrisos fermentados
Em ódio ou esquecimento, aquelas pupilas encerradas em íris
De mil cores, os ritmo dos passos, os perfumes de dia e de noite,
Trago-vos a todas comigo, nos dedos, nos lábios, na sacodidela
Do tesão da manhã, no olho do cu, nos olhos, lá mesmo no fundo
Onde também vivem certos planetas e estrelas, onde morrem sonhos
E nascem medos, todas, tantas, perdidas para sempre.

31.05.2016


Turku