terça-feira, 4 de outubro de 2016

Referências

Que haver de falar agora?
um serial killer
à beira de uma execução virtual -
a frase original
em que lhe pediam um último pensamento no facebook;
a vida de trás para a frente,
resvalando uma morte encarneirada 
cheia da recusa de uma pérola a um porco.

Que haver de falar agora?
da mulher obstinadamente retalhada
quatro tentativas de suicídio e uma rosa no chão;
ou Paris no centro do Apocalipse:
milhares de Picassos reproduzidos em massa
adornando lares de dealers Napoleónicos
e prostíbulos de poetisas dedicados
a enternecer grotescos homens em miséria.

Que haver de falar agora?
agora que se acabou a infância
e é banal o medo, o escuro, o próprio pensamento
acerca do tempo atrapalhado pela cronologia
do que se finge, mas é sincero e discorda
do que se agride e é amor quase sempre.

"Onde nasce um nada cresce um pouco de tudo",
dizia o sentido obrigatório da existência;
uma teima muda num pranto com mais de duas décadas:
figuras mitológicas, pianos envelhecidos, Rockstars,
os anos 90 dentro de um globo de cristal:
flocos de neve caindo dentro da alma - e a alma
como se fosse um brinquedo pousado ao abandono.

Que haver de falar agora?

sábado, 1 de outubro de 2016

Guitarra (ou Alma) Portuguesa

Do som que nos apregoa
E nos dá ou tira a vida
Tocam as cordas do coração
E amarram a respiração à batida.

Que força tem cá dentro!
Só eu me rendo assim?
Só o meu silencio, benzido por Odin,
Te revela a obscura certeza do pranto.

E neste gesto sem fim
Me sugas para o inconsciente
Nesse colectivo de memórias perdidas
Nesse murmúrio rompante de desejos...

E eu continuo aqui
De lábios semi abertos
Feito entreposto de vidas futuras
Ou de passagens, por outros, pilhadas.

Se ao menos não houvesse o tempo
Em que o teu soar fosse verdadeiro...

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Euphoria

O relógio sem hora aponta o homem da manhã
escapo do tempo por vir - descomedida
da semente inventada para o vácuo:
há de nos minguar a memória ideal,
o principio adulterado de todas as quimeras finitas.

[Jamais seremos o sonho construído no lado mais frio
nem o nome longínquo adormecido na cama alheia]

Finjo a tua onírica balada
de olhos fechados contra a parede
temendo dormir um segundo mais
da minha inequívoca insónia milenar;

[Jamais nos pareceremos tanto com o final do Verão
nem tão pouco com a urgência quente de outra ilusão]

e o meu sorriso é uma cicatriz mentindo
as confidências dessas graves madrugadas
onde nunca seremos tão estranhos como amanhã
ou tanto da lembrança infante resgatada numa canção.

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

A Rã

Uma rã salta entre o habitat terreno e aquático
sem saber do lugar a que possa pertencer,
chamam-lhe a indecisa vida que leva - alguém
num mergulho repentino - ninguém
no silêncio da enseada.

 Vejo-a estática, em porcelana adornando o jardim
 finalmente mágica da indefinição dos ciganos

Uma medonha imobilidade decorativa dos pequenos lares,
das rãs pintadas de verde-relva
como se fossem natureza finalmente domesticada:
a rã inquieta eterna dentro do peito.

A esperança de encontrar a mão artesã
capaz de moldar a cardíaca irregular,
torná-la efectiva obra humana
repousando ilustrada paz doméstica.





quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Crazy in Love


Eu sei, baby, acerca de todas as tuas pinturas
artes que tomaste como tuas e minhas - foi outra
quantas lágrimas derramadas por ti enquanto dizia
"sou teu", agora importa-me se terás voltado atrás
da música ouvida,o tempo parado no lugar de alguém
um desleixo bravo no corpo de outra mulher
mais a infelicidade de trocar um nome pelo outro;
confundirás as voltas das divisões finalmente arrumadas
agora sem o enleio do caos que era como ninho
de orfãos desmedidos correndo e destruindo:
para nós, felizes brincadeiras de Romeu e Julieta
carinhos de ir à rua pela madrugada confortar-te o vazio
trazer-te mais pássaros feridos - com quem comiamos
bebendo da saliva um do outro, alimentando infetamente
o abandono de todas as produções com que te quis
e todas as paixões físicas que te eram dedicadas:
a nenhuma te entreguei com tanto amor - a ninguém
te quis cheia da vida latejando, agora sobre escombros,
um assombroso silêncio de Chernobyl entre nós.

Desfiladeiro

Trocar o desespero por idas até à tua alma,
deixa-me dizer-te acerca da eternidade
é qualquer poeta apaixonado por um abismo,
a réstia humana em que somos os dois:
desde o papel à epiderme vai um estreito desfiladeiro
olho para a queda mortal em que te tento encontrar
lá em baixo manadas de búfalos, correndo acelerado
o coração que vai sempre sentir o medo
desistente tentativa de saltar até ao teu abraço -
É verdade, fico como que escrevendo, mas sem anotações
tudo a torto e a direito num pensamento de linhas travessas
tinha o mapa desta metrópole, mas deitei-lhe fogo
do mesmo com que te anseio, num delirio caótico
frenético da cidade incandescente cheia
das divisões vazias em que somos alguns - tantos
no cumulo de querer tanto a ninguém de uma vez só:
insónias inteiras dedicadas ao salto por dar
uma vida que é como se fosse um arranha-céus
onde já nem valentia existe para o âmago final
tudo por consequência do beijo unilateral
a quem tenho por receio de haver alguma vez existido.

domingo, 11 de setembro de 2016

Parágrafos

Blindada rotina
(Que me faz sossegar
E me retira o esplendor
Dos lugares comuns):

Sê leal à tua ruindade
Apaga-te da vida dos mortais
Que dependem uns dos outros
Para nem saber imaginar.

Lutar! Lutar sempre...
O melhor só chega no fim
Quando todas as vivências de aglutinam
E as derrotas não perturbam ninguém.

Passar à fase em que se existe,
Não fruto do acaso,
Vingar a arte da vida
Numa performance eterna de experiência.

E quando não há mais para caminhar,
Nas memórias, mergulhar!
E adoptar novos sentidos
Nos palcos que, pela vida, foram vencidos.




sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Medo (IV)

A casa enfeitada de cristais vários
Desobedece às leis do medo
Não me apoquenta a desordem
Em que tudo jaz serenamente.

Eu, inquieto, sem interacção,
Imóvel, despertando a curiosidade dos objectos,
Todos calados, a fingir que não pensam
À espera da reacção amedrontada.

Nisto, assumo! Faço! Dou Vida!
Porque de mim nasceu o medo
E nele reconfortado cresci
Aquele que temia ser, me tornei.

Nunca conceberei algo, de ti, liberto
Mas medo: minha apoteose fulgente
Desfaz esta minha fé de ti
Relembra-me o que é morrer feliz!

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Poema com Anos de Atraso

costumavas escapar no rosto em que te parecesses
qualquer um pedestre caminhando os teus pensamentos
um homem num milhão sorrindo a inequivoca promessa

do dia a que chegámos

a manhã depois do inferno
onde somos um cá dentro desde a tua janela
e o sol brotando nudez à conversa

chegado o tempo de colher todas as sementes tristes,
de encantar uma bela mulher sem chão,
a que se escapa no rosto em que se parece

e que finalmente retorna

à pátria querida de todos os desterrados,
cheia do testemunho ausente
da longa jornada até ao humanamente longínquo

um nada de Primavera mais remoto ainda
cristalizado no peito intemporal
de todas as palavras correspondidas. 

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Tua

Tão brava galopas
Nas rochas que desprendes das montanhas
Que cavas no seio dos montes
E se prendem ao teu esplendor.

Essa declaração de amor que é ser minha
Eu jamais a tinha escutado 
Não fosse essa voz a rebentar ao sol
Num eterno romper de liberdade

E um dia raptaram-te, fizeram-te deles.
Querem que já não sejas minha
Que te desfaças contra uma parede
Que te suicides nos vales que sozinha forjaste.

Tão incrédulo ver-te presa,
Esmagada e triste,
Comida pela ganancia
Destruida.

Nunca mais fui o mesmo
Só o sou ao relembrar-te
Quando te desceste do céu 
E ao infinito me devolveste.




De, João Bilhó

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Rebentação

Vejo-te dentro da maré alta, rebentações furiosas
largadas à ternura de um postal sobre a costa luminosa.
Vivo na pedra onde cai a tua água, lágrimas pela madrugada
salgando a boca mutua de palavras em estado-limite.

Assim somos entre beijos aquosos - um afogo de amor
a favor da natureza implacável, onde só o tempo
construirá a mecha de areal que pretendemos
a cada abraço profano, a cada onda de turbulência desmedida.

Lembro-me desse mar, atraida pela cicatriz da rocha,
um beijo em desespero como se fosse erosão sobre os lábios:
como me aproximo de ti e vejo a escarpa mortal
és o salto para dentro, a vista desprotegida sobre o Cabo.

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Dimensão Quimíca

Eu e a miúda contra a parede, se ao menos alguém soubesse
o sangue que ferve de igual forma em corpos opostos
como nasce o sorriso, o rosto pousado na relva
pássaros verdes cantando um verão deixado:
em como fugi da divisão e encontrei uma casa no olhar,
dela, deles, nós nesta dimensão desconhecida
a que chamam atracção
quantas vezes através do abismo,
agora subitamente através do sol iluminado
uma segunda chance de sermos infinitas
todas as hipóteses tiradas com força à loucura
finalmente livres da grade em que nos convençeram a vida.

sexta-feira, 22 de julho de 2016

Astral

Oh boy, we meet every nigth
showing me draws for poems
cuddling ex-lovers and rare lands,
allways in a hurry, escaping
from the sadness of a past life:
both afraid of dying again
in each other arms.

Oh boy, you will know me best
by the sunset of life:
sleeping less Darma troubles
I'll kiss a very old traveller,
your mouth speaking 100 women
and every writen word to come.



domingo, 17 de julho de 2016

Arquitectura


A minha, era a gaiola mais bela de Lisboa
paredes a verde e mogmos ricos para cigarros,
um quarto para o piano em silêncio
repousando porcelanas orientais
mais quantos segredos guardados nas divisões:
fomos menos que a riqueza decorada.

Tanto foi igual a cor dos lençóis
que o abraço chegou tardio e sem corpo:
duas ideias trocadas tropeçando na mobilia
era felicidade descoordenada e sem pernas
nós dois no centro do conjunto:
magnânimos como estátuas roubadas.

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Terceiro Olho

Pensei, em tempos, demorar-me longamente na labareda na esperança de encadear efusivamente os olhos do leitor. Como se as palavras pudessem ser a nossa pele una e o fogo pretendesse queimar mais alguém. Mas os infernos são indivisíveis como qualquer responsabilidade ou multa. Ainda assim, detive-me nesse retrato, um autorretrato cego de tanto mirar-se através da luminosidade. Confuso do que é um dia de Verão ou uma Estrela no céu capaz de dissolver o globo ocular. Em como às vezes não deveria ser possível determo-nos tanto tempo sobre aquilo que nos faz feliz, principalmente quando a felicidade é um estado de ânimo que obedece apenas à sua própria elipse. A noite vai invariavelmente cair e não valerá a pena correr, procurar um olhar estranho ou beber da imaginação um brilho impossível de reter. Nem as próprias palavras serão seguras, principalmente quando lançamos os textos na fogueira ousada que é a humanidade e o seu sofrimento universal. O relevo medonho de que na manhã seguinte jamais nascerá o sol tornando válidos os presságios dos poetas dolorosos e mais um sem-fim de indicações bíblicas acerca do apocalipse. Mais aqueles que acreditam na efabulação e se atiram do penhasco sem esperar pela prova determinante: o primeiro raio da manhã contra todas as odes. É verdade, olhei demasiado tempo a hesitação e as possibilidades infinitas de todos os corpos estelares até gastar o olhar de coisas excessivamente brilhantes. Chamei-lhe contemplação e com o tempo comecei apenas a contemplar uma ideia. A ideia que tive num dia à beira de um regato de Monet, saboreando as tonalidades da água, mentindo o travo da tinta, bebendo alegremente do veneno com que se faz arte. Beijei com a boca intoxicada de ficções e escrevi demasiados poemas. Fui até ao penhasco meditar sobre fim e voltei para casa sem nada, exceto o incontornável desfecho adiado. Andei até a adiar o momento em que pegaria nessa pintura outra vez, de saber que ceguei o terceiro olho e agora é praticamente impossível voltar para acabar o que comecei: o poema, o regato, o abraço a meio da madrugada.   




domingo, 10 de julho de 2016

Twin of Myself

Acordo poesia, lembrança da rua vazia
ela caminhando ébria de vida, procura
a irmã que compunha a sua melodia.

Uma só miúda doente da gémea adormecida
demasiado tarde para socorrer o sonho -
a vida impossível vive enroscada
sobre o próprio corpo à procura dessa companhia.

Ela sabe as coisas que soube em tempos
como a verdade é peregrina da liberdade
e os homens sucumbem no rosto da vitima
contando artefactos acerca do amor.

Como o sofrimento não foi em vão,
mas ainda é como cadáver na estante,
tiras o livro vindo da mão mais silente
é leitura de infância nas nossas lágrimas.

Vermos o mundo embaciado de um espelho
sem saber que abraço dar ao reflexo duvidoso
a mesma igual cá dentro, mas ainda mais oblíqua
falando-me timidamente acerca do caminho:
uma bifurcação de vias estreitas no pensamento.

É eterna a cisão com que meto mão e dedais
fio na agulha que entrelaça as polaridades
alinhavando o inequivoco tempo longínquo
às palavras inventadas para o esquecimento.




sábado, 9 de julho de 2016

Tela

Tela  #1

Tantas as Telas pintadas em tons cinzentos
Senão cores zangadas a ragar talentos.
Letras, Claves de Sol de Amor sedentos
Tectos de rimas e desenhos com alentos.

E foram deixadas à chuva as telas.
À erosão largadas.
Esborratadas- Lavadas.
Mas, ainda não se apagaram as velas.

Porque nunca tudo foi dito.
Nem escrito.
Nem pintado.
Apesar de agora pantanoso ser o terreno.
O que piso molhado.

Joana Guerreiro

Tela #2

Somos como dois corpos em branco
Uma epiderme sem raça ou biologia que lhe sirva
Duas Telas a nú, deitadas lado a lado
Como dois amantes por acontecer

Réplicas de um futuro inóvidavel.

Qualquer coisa de belo
Que não me atrevo a pintar;
Um homem ao perto
Que não me atrevo a criar.

Lígia Reyes


Poemas escritos lado a lado pelas 18.10h

terça-feira, 28 de junho de 2016

Nefasto

Corre por mim, dentro de mim, um pensamento atrás do outro
ambos quebrados, cansados da tirania da paz doméstica
sempre atrás de um final espetacular: do pano que desce
na tragédia inventada sem aplausos, sem beijo que desperte
ou braço pousado que me invente outra mulher.
Sou uma dor noutra palavra - a que se escreve na inconsciência
assolando de feio todos os restos de versos;
nem há como pronunciar a ineficácia de toda a poesia:
um desespero rápido na mão tingida a sépia
aperta a coroa de Cristo até que seja picada de rosa
e uma gota deste sangue sobre a boca de quem a declame.
SOU! o espaço em branco que promete a beleza visual
do texto arquitecto de toda a Literatura:
um pequeno deus farto do silêncio das coisas desnecessárias,
do que se escreve e nem é mentira nem verdade nem forma
cujo sumo embriaga o detalhe cego da virtude.
Sou e corro sem fim cheia de um nada que preenche
pensamento atrás de pensamento, palavras-paranóia de gente inexistente
todos dentro de mim, dançando na minha cabeça
um ruído de música que parece a companhia de outrora
tudo o que eu só sou na presença de mim:
pequenos instantes iluminados à sombra do impronunciável
falsas revelações geniais de omnipotências induzidas.

sexta-feira, 17 de junho de 2016

Espelhado


A vida prepara o poema no intervalo do tesão
entre o entusiamo e o dissabor acaba-se qualquer Verão,
alguém que se veio e nunca mais voltou
um herói que levava pela mão, fugiu-me como um balão.
Vi-lhe ao largo a textura do monocromático
fingi que era eu de um lugar já desconhecido,
uma gaja sorrindo para o espelho, para o peito
para a curva que faz dançar
mil encantos demoníacos no soçobrar.
Um carinho inofensivo no rosto
parapeito de nenhures de um desgosto.
É essa mão no vidro com que me tocas
um sorriso dentro de Narciso, beijos árduos
na boca partida das miragens.
Foram demasiadas as viagens paradas
um encanto de paisagem: nós dois e as drogas
quase que parecia felicidade a côr do céu
milhões de chapadas à toa em cima do amor
deitado, drufando,
sem dar de si até à manhã seguinte,
acordou enregelado da beleza pedinte
dela e do rosto do tempo que me é
que se veio e nunca mais voltou

quarta-feira, 15 de junho de 2016

O Desenhador de Sóis XX


O poema ensina o seu coração, o seu batimento, ele é muitas cidades a arderem em desejo; há no centro do poema um sol que irradia para todos os lados, uma afirmação de vida, uma múltipla fonte de luz. As palavras são centros de vibração, elas tocam-se, expandem-se em ondas, elas são estrelas em pleno nascimento, em nascimento continuo, cada olhar sobre elas as faz renascer. O poema é uma constelação que faz acender a linguagem, que a faz viver; A constelação que é o poema faz nascer a palavra a cada segundo, a cada batimento do coração a palavra é nova, ela tem novo sopro, ela é uma nova afirmação de vida, uma nova fonte, uma nova onda expansiva, a cada batimento do coração do poema surge um novo acendimento, (muitas cidades a arderem em desejo), a estação de serviço em mercúrio, o olhar da minha filha. Cada novo olhar sobre o poema cria um novo nascimento, uma aceleração diferente: eu acelero o poema quando o olho, eu o faço nascer. O poema é um animal invencível, ele é a vitória da linguagem. Quando eu afirmo:

O poema ensina o seu coração
e o seu coração é um céu azul.

Eu digo que esse coração é um núcleo que acende tudo o que o rodeia; o poema não pergunta o que é o fogo, ele afirma, ele cria uma comunidade, ele une, ele não para nunca de unir. As constelações comunicam, acendem-se, dançam, cruzam os seus fogos, a sua dança pode ser perfeita e - por essa mesma possibilidade - ela é já perfeita. O animal invencível é a possibilidade mesma da vida, a afirmação mesma da vida. Se o poema nasce em frente a um promontório com Safo ou se ele nasce no meio da rua com Cesário Verde, o que os une é esse nascimento, o mesmo batimento que implica diferentes vibrações, o mesmo início, que implica diferentes processos. O poema ensina a cair no chão ou ensina a rir dessa queda, o poema ensina a ver o outro mas também a ser sempre outro, doutra forma diríamos: o poema faz nascer, o poema faz brotar, o poema multiplica ângulos e nisso é tão humilde como uma raiz ou um semente que leva a vida no seu interior e que só necessita um pouco de água, um pouco de terra, um pouco de luz, uma comunicação (que é também assonância e conversa) da natureza. Tudo aqui é soma, tudo aqui é mudança, acrescento, comunicação, comunhão; união enfim, é disso que falamos quando falamos de poesia, de um abraço com uma geração intemporal, de um abraço com Orfeu, de um abraço com Diógenes; este é o contacto que a poesia inaugura, um gesto que se pretende infinito, um mergulho, um abraço, nisso a poesia parece-se muito ao ato de nadar, de atravessar, de romper, quando escrevo um poema atravesso o teu peito a nada e isso é a minha comunhão, o momento de erguer a cabeça e continuar a olhar o chão, aquele momento de acendimento que se dá antes das grandes viagens. O poema antecede a viagem. Ele dá-se num mergulho de luz, num momento de celebração, de encontro (com o todo e com o mínimo), com a flor que rompe o asfalto, com um mundo que se afirma quando o afirmamos. Este é o mundo, resta celebrá-lo, bendizê-lo, elevá-lo, acendê-lo, esse é o momento poético, o momento de criação de ênfase.

Nuno Brito.

domingo, 12 de junho de 2016

Cuidado com a mulher escondida atrás da porta

Traz um punhado de beijos com uma despedida
de há muitas Eras
quando o barro segurava cerveja quente
a electricidade ainda não iluminava o rosto do demónio
e as pessoas demoravam-se mais umas nas outras.

Anda cá dentro às conversas interiores
a voz está fragmentada há muita vidas,
foi absolvida, mas não foi esquecida
e só o sussurro da ternura lhe parece silêncio.

Dizem que enlouqueceu por amor
perdeu o olhar dentro de uma carruagem
um comboio sem-fim fora dos carris
cortando-lhe ao meio a essência.

Um pássaro fugiu-lhe para muito longe
e ela finje que morreu
só a memória do seu piar a anima
de todos os fulgures de um Verão.

sábado, 4 de junho de 2016

Palavras ao Mar

Tentei todas as proas, todos os barcos na travessia do sul.
O mar deteve-se sempre no mesmo lugar, dentro de um copo de água.
Sorvo como se fosse cerveja gelada numa tarde de verão.
Um fim carinhoso, de levar todos os oceanos à frente
e cair, rodopiando, num destino cada vez mais salgado.
Capaz de confundir uma lágrima na boca amada
dilacerada no silêncio da boca fechada.
É profundidade do escafandro silencioso
cheio de todas as palavras invisíveis
guardadas dentro da garrafa de vidro:
uma mensagem impossível de chegar
lida a bem querer por um rapaz deitado no areal.
Uma carta de amor para qualquer um.
O destinatário num mergulho errado
impossível de tragar num sopro afogado.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Buraco Negro


É muito peso, todos os nomes, aqueles sorrisos fermentados
Em ódio ou esquecimento, aquelas pupilas encerradas em íris
De mil cores, os ritmo dos passos, os perfumes de dia e de noite,
Trago-vos a todas comigo, nos dedos, nos lábios, na sacodidela
Do tesão da manhã, no olho do cu, nos olhos, lá mesmo no fundo
Onde também vivem certos planetas e estrelas, onde morrem sonhos
E nascem medos, todas, tantas, perdidas para sempre.

31.05.2016


Turku

segunda-feira, 30 de maio de 2016

O Desenhador de Sóis: O meu coração


O meu coração é um boi que atravessa este campo quente com seus olhos húmidos
mais as moscas que o picam de cada lado das orelhas,
é uma aguarela de criança com os seus traços seguros
Que deixou pequenos restos de areia, terra e alguns pelos de pincel
no centro do sol - O meu coração é uma memória do sol em cada célula,
 uma vontade de rir, Tão quente e tão quente - de tudo e de tudo…


O meu coração é um campo de girassóis,
Um pintor de olhos grandes que desenha caminhos a lápis de cor,
as fontes, o feno, o guarda-rios mais a sua família feliz
e um grande sol central no meio da cartolina,
por ele bebo a jorros, com os olhos todos:
Com a vida inteira.

O meu coração é uma criança que tira catotas do nariz
E tem no bolso o lenço mais sujo e mais seco que o avô lhe deu
O meu coração é só meu coração e não tem iniciais nem nome nem roupa,
E bombeia a música para todo o lado como qualquer coração feliz
E dança e brinca e agora mesmo ele é uma enchente de nós todos.
O meu coração é das cores mais quentes, das cores do fogo,
Nele se beijam as memórias mais doces e os faroleiros descansam
Depois de dar luz a tantos barcos na noite mais longa do ano.

Olha então de frente a nascente disto tudo e enche-se de luz,
sou então um animal feliz e abro muitos livros;
deixo tudo sublinhado: as casas, as ruas, as paisagens
os policias, os cães policias, o que as pessoas dizem e contam,
os segredos e os que os guardam,
O meu coração deixa a vida toda sublinhada a marcador fluorescente,
E escreve em todas as margens, e apaga e reescreve e completa e une,
e deita-se ao fim da noite para descansar, completo e cheio como um pôr do sol,
saciado e feliz como um vento quente que faz tremer as folhas lá em cima
e nasce e nasce e nasce ainda a cada instante.



sexta-feira, 20 de maio de 2016

Um pequeno flyer acerca de um homem sábio

rasgo, recicla,
não tornar a vê-lo uma segunda vez
não me lembrarei nunca da sua voz única,
dedico-lhe um poema de uma conversa que escutei,
mas que só é minha às vezes
quando a noite se põe atrás dos prédios,
é a vida da janela invadindo
o conselho que julgo ter ouvido,
um livro oferecido, para sempre a carecer
da atenção imediata dos papeis distribuídos
em especial, aquele que nos cabe,
que arremesso contra a estante,
vulgar pormenor na decoração entristecida,
a forma da vida na transformação das coisas prováveis,
esvaindo-se um pormenor no rosto perdido
de quem estendia a mão,
rasgo, recicla.

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Beijo Ido

Adoece-me a memória da ignorância, dos homens levados pela boca
num corpo inútil de mais palavras. Tinha esta ideia da felicidade,
encontrei-a no banco em que nos dedicámos à ausência, à má poesia,
sem a convicção da eternidade perdurando num sorriso, perturbados
ao ponto da força inerte: o teu corpo tombando no meu universo,
caindo no chão empedrado que emprestei à ideia de humanidade:
dois homens insones caminhando a despropósito de que avenida,
enquanto a noite bastasse pelo menos o vazio encontraria o seu fim.

Enfim seriamos, corpos distensos, boiando no Universo integral
dispersos num abraço sobre a fria atmosfera, embalados pela Laniakea
que nos separa de volta ao lugar onde já estivemos
regidos pela lei que nos aparta e a Lei que nos devolve;

para sempre arquitectura do vago encaixe entre as estrelas,
um mergulho absoluto na escuridão do que já foi
e no tanto em que tardámos escapar aos lugares idos:
tornámo-nos no beijo alheio do mesmo sítio
na indiferença de quem por lá passa.

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Inventar Sorrisos



“This is our last embrace
Must I dream and always see your face
Why can´t we overcome this wall
Well, maybe it´s because I didn´t know you at all”

Jeff Buckley

E agora quê, agora que cada passo teu me sabe a derrota,
Por ser mais um ano a caminho de uma década perdida,
Cada sorriso que apenas te imagino, um corte na ferida da distância,
Agora que cada gota de ti me dói tanto quando evapora
E as palavras que quando às vezes me pousam na fome
Me parecem ter sido lidas num livro que não me lembro,
Nunca serei um Hemingway, só na sede ao chumbo,
Só por dentro te agarrei naquele jantar antes das férias do Natal,
Aquela noite sim, foi a despedida e só anos depois encontrei
No livro do Caeiro que me deste, uma dedicatória nas últimas páginas,
Serão essas as nossas páginas, tantos livros perderam o significado
Agora que os teus olhos há tanto tempo, tanto, longe das páginas
Amarelecidas da minha vida, abusadas pela passagem dos anos,
E agora quê, fomos um beijo violento contra todos estes anos
E quilómetros, momentos antes do bater de uma porta,
Um subir de escadas, o bater de outra porta e logo
O primeiro sorriso que te inventei antes de acenderes a luz,
Enquanto esperava lá fora a olhar para os pés indecisos,
Ela ainda volta, mas só o táxi chegou e lá fui inventando sorrisos
Nos teus lábios até ao cemitério de Paranhos e de lá até hoje.

18.05.2016

Turku



terça-feira, 17 de maio de 2016

Aguarela

Hoje preferia viver sem a consciência vaga dos pássaros;

voavam de volta às primaveras oscilantes, de novo o sol
rasgando de dentro para fora o vento, vi-o no teu cabelo,
um clarão sobre a íris fechando a paisagem benevolente
de par em par, finalmente libertos de um horizonte ideal.

acredita em mim, conheço-os de os ouvir partir,
chilream a conversa desmedida em que nos demorámos
nem todos voltarão na Primavera seguinte,
nenhum de nós tornará a pousar no mesmo umbral.

o pequeno galho em destroço, algures uma rua deste mapa,
dos olhos aniquilando a certeza dos panoramas
numa indefinição eterna de ser forma ou vida;
de estarmos os dois constrangidos numa pintura banal.




quinta-feira, 5 de maio de 2016

Grande Atrator

Laniakea ou O Paraíso Imensurável trata-se de uma teoria recente que redefine o nosso lugar no Universo. Sabe-se, das forças que contribuem para a distensão sideral das mais de cem milhões de galáxias viajando ao longo de quinhentos e vinte milhões de Anos-Luz, de um ponto gravitacional central ao qual chamaram de Grande Atrator. Foi o Terras que me chamou a atenção para esse comando supremo que invade sem querer a vida mais efémera. A minha janela dá para uma rua de movimento lisboeta, conheço bem a forma de um rosto desconhecido. A casualidade entristece-me, principalmente quando chove e a calçada fica escorregadia. Tenho sempre medo do Grande Atrator a cada passo que dou. Principalmente de decorar uma feição larga, um riso basto, um olhar melancólico. Um rosto novo de alguém que não lembra o de ninguém, mas que é de tantos. Sei que enlouqueço a pensar nestas coisas. Sei que volto à compulsividade da Between the Bars, volto a um par de olhos num lado qualquer, indefinida numa personalidade que me é omissa.

A minha mãe faz questão em lembrar-nos de um amigo que agora está morto. Um tipo louco do Porto que sempre pareceu entender-me bem demais. O Miguel tinha um barco chamado Corto Maltese e nós tínhamos uma música comum, a I Still Can't Sleep do Bernard Herrmann. Queixava-se muitas vezes por mim, porque não bebia um copo de vinho, porque se haveria de negar assim a alguém o prazer mais comum e mortal? “Deixem o alter-ego viver”, dizia à minha mãe, mas era o mesmo que nada. Eu sentia o conforto da sua insónia permanente e já completamente anestesiada cai num sono confuso perto do seu regaço. A sua mão abraçava-me cheia das coisas que sabia, mas que não esclarecia. Lembro-me que o conheci muito miúda e naquela altura fiz as contas com os dedos para verificar se éramos tão assombrosamente distantes. Estava longe de saber que nos parecíamos de forma tão igual quando éramos ambos jovens ou quando seremos ambos tão velhos.

O Miguel tinha as histórias mais fascinantes com mulheres, fazia lembrar um Bukowski, mas ébrio de vinhos portugueses e geografias ribeirinhas. Tinha a ideia de oferecer uma ilha completamente deserta a um amigo chamado Filipe que na altura, sem saber, vivia uma depressão continua e miserável. Nessa altura a única pessoa de quem me lembrei para me ajudar a descobrir a ilha para o meu amigo foi o Miguel. Telefonei-lhe, formulando o estranho pedido que ele aceitou como se tivesse vindo de uma cabeça particularmente sã. Disse-me de imediato que podíamos deixar o meu amigo nas Berlengas, que ele só tinha que preparar o material de campismo e o espírito para uma verdadeira solidão. É fácil estar na infelicidade do lar, onde há sempre uma televisão, um computador com acesso à internet e os mais diversos estímulos familiares a quem podemos deixar a culpa da miséria individual. O meu amigo que se dizia tão deprimido e farto da vida cosmopolita foi incapaz de se deixar levar pela sua própria ideia mirabolante que eu me tinha dado ao trabalho de organizar. Liguei de novo ao Miguel que me disse logo que eu não ia a lado nenhum com rapazes tristonhos e convidou-me para ir ter com ele, para fazermos as vezes da terapia destinada a outro homem. Acabei por ter de ser eu a organizar o material de campismo, comprar um bilhete de ida para Peniche e ter de me entender com uma aventura que nunca me foi prometida. Pela viagem de caminho pensava no Filipe, em como estava a viver o sonho de que ele estava incapaz. Uma ilha deserta.

Quando cheguei encontrei o Miguel sentado dentro de um descapotável. Beijei-lhe o rosto como se fosse carinho de filha e ele ligou o auto-rádio na estação que passava continuamente os grandes clássicos do Jazz. “Então Nônô preparada para a desintoxicação da vida urbana?”. “Da vida urbana e das drogas que me dão para andar feliz”. “Também eu já fiz milhares de vezes essa cura, é sempre diferente de cada vez que as experimentas. Primeiro são os sintomas físicos que dão cabo de ti, a única forma de parar os suores frios e as tremeduras é com banhos de mar frio. Depois a vida que te esqueceste de viver enquanto estavas intoxicada, cai-te em cima como se fosse impossível de viver. Provavelmente pensarás no suicídio, nas coisas impossíveis que ficaram para trás…”. “Não é a minha ideia morrer pelo caminho”, disse-lhe, ainda sem saber das noites escuras do Oceano. “Não te preocupes, nenhum de nós os dois foi feito para morrer através das suas próprias mãos, o suicídio é só um tesão”. 

terça-feira, 3 de maio de 2016

Vazio Penúltimo

Cheira a carne por comodismo, um animal à beira da estrada
pastando um andar compulsivo, carente de cascos por dançar
um estranho na rua pedinte de uma mulher nova
levando o cigarro alheio com que teima mentir
a pista em que se lança e por onde cai vertical
a quem toda a gente pára para ver o preço e desdenhar:
daquela estirpe há muitos e não servem
na boca de um filha mimada, na pele que teme o sol
é odor execrável da rua contígua a um free lunch:
o pedaço sujo que metem à boca sem carinho
desfazendo-se no arrepio falso de um estômago satisfeito
do amor que é necessário, mas alguém tomou como escravo
à estranha necessidade de foder numa cama e com a luz apagada
um chafurdanço num vazio penúltimo, num corpo sem pavio
incensário de mulheres resignadas, debruçadas num altar erecto
todos eles pedindo pelo mesmo: comida quente todos os dias
por causa de um lugar cá dentro, impossível de rechear
de tragar continuamente até serem dias novos.

sábado, 30 de abril de 2016

Transeunte

Arde-me o suor e um corpo por curar a sensualidade das cidades
um homem na Almirante Reis que passou a ressacar, sem saber das horas
nunca há manhã seguinte para os homens em desespero
nem ninguém consegue parar a insónia dos sinais de trânsito.
somos todos transeuntes de um afecto comum, as ruas a direito,
mas são raros os acenos indiscriminados nas metrópoles:
ai de alguém querer tão longamente a um estranho
sem que lhe tentem levar o nada que lhes pertence
o tanto que custa a ganhar todos os dias,
que desaparece nas costas de alguém e se cruza de novo
sem dar conta de quem o rosto tão próximo e mundano
aquele que chega dilacerado de uma história pessoal
num sitio que é caótico de um silêncio resignado a coisas alheias
numa ferida que às vezes dói em coletivo.

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Inexistência

O que se passou comigo, agora de olhar encostado
incapaz de terminar a tarefa a que te propuseste
cansada do nada que não termina, da espera desiludida
uma mulher não devia servir para mais, ninguém mais compreendeu
o grito que não tenho dignidade de fazer soar
e tantos beijos incapazes na boca para dar.
era contigo que sonhava naqueles dias lentos
e agora estou capaz de suar horas impossíveis
tragar de uma vez só uma espera inexistente.
que espécie de palavra me arrepia, quando a resposta
devíamos ser os dois noite fora insones, eu
e quantos relentos nocturnos à espera de poemas.
tanto que tinha para te contar, recordações quiméricas
das quais duvido e não tenho nem ideia de ter existido,
em que sonho me aconchego e não termino, a medo de mortes
e flores abandonadas às portas de um quarto sem luz.
olho para a lugubridade fingindo ver a felicidade
teço no meu corpo as mãos que ficaram num piano
a realidade parada que deixei num canto, as mãos de tudo
quanto era necessário na música que deixei no repeat
e lembranças da pessoa que não sou e faço por não mostrar
o homem que deixei a meio de um sorriso, num rosto de más-horas
ébrio, torpe, infinito.

domingo, 24 de abril de 2016

Trás-Os-Montes



Trás-os-Montes sempre foi a colónia mais longínqua do império,
Mas quando chegava a fome de carne para canhão, todos eram filhos
Da pátria, mesmo que fossem com pouca carne por causa das fomes
E dos Invernos que a capital nunca viu em Portugal continental,
Não havia sapatos para todos, mas balas para matar os inimigos
Da nação nas suas próprias casas, à farta, depois houve uma revolução,
Eu continuava a ter que acelerar no Inverno a bicicleta,
Se fosse demasiado devagar, parava no meio de um charco de lama,
E enterrava-me lá todo, lá na aldeia, mas eramos só uns garotos,
E ninguém se importava muito em acender mais umas velas
Quando um de nós atirava contra os cabos eléctricos descarnados
Uma vara de sombreiro desde um arco improvisado
Com um pau de castanheiro e um baraço dos fardos,
Tractores, sim, tive um, o meu pai fez as rodas de cortiça,
Eu improvisei o resto e foi a inveja da povoação,
Os de plástico vi já andava farto de bater punhetas em palheiros,
Trazidos das feiras da vila, parecia a capital na altura,
Sujos não andávamos porque a pele das mães se tinha habituado
Às geadas, e que sorte não ter havido uma guerra no nosso tempo,
Só ouvíamos as histórias deste que veio maluco da Índia,
Tinha sido a droga e eu a pensar que a Índia lá para além de Bragança,
Depois da Espanha onde uma vez por ano íamos comprar chocolates
E meias, até o meu avô era conhecido na Espanha, traficante,
Na altura dizia-se contrabandista, de meias, um criminoso perigoso,
Um inimigo do Império, claro, não foi a nenhuma guerra,
Uma vez enfrentou um javali por fome com um machado,
Fartou-se durante uma semana, mancou o resto da vida,
Mas nada disto interessa, amanhã é dia da liberdade
E eu aqui longe de todos os que me queriam fazer pedir,
Longe de todos que me diziam não me querer ouvir,
Porque senhor doutor lá de uma fortuna na Suíça,
Longe de todos os que filhos deste e daquele, que julgaram
Que podia roubar-lhes o poleiro, longe do acordar
Para poder ir dormir, para voltar a acordar e no fim
Pouco mais sobrar que para o bilhete de autocarro
Para ir ver a família em Agosto que veio lá de longe,
Do estrangeiro, coitados, quando eu podia ir ao café todos os dias.

24-04-2016

Turku

João Bosco da Silva


sábado, 23 de abril de 2016

Quanto De Ti É Já Defunto


Quanto de ti é já defunto ou rua escura numa aldeia quase deserta do interior, 
Quanto de ti te deixou e já não és senão o esquecimento da tua voz nos outros, 
Procuram-te no degrau que falham nas escadas de um prédio sem luz, 
Quanto de ti ficou nas páginas que visitaste sem o toque da saliva 
E dos dedos engordurados pelos dias, a quem te deste, diz-me e dir-te-ei quem és, 
Não te procures nos espelhos partidos dos outros, leva antes umas flores de plástico 
Que duram mais e com os olhos fechados contra o Sol de Agosto, 
Revisita o som do teu nome nos lábios que já secaram de ti, 
Quanto de ti é já defunto, o suor na testa do pai e terra revolvida no quintal 
E te dizem que agora ali o teu gato, o teu cão e todos os sonhos que não levaste. 

Turku 

23-04-2016 

João Bosco da Silva

domingo, 10 de abril de 2016

Ponto de Partida

Vai-se a ver e também nós
já fomos muito melhores,
desde o tempo em que não tínhamos
segredos e outras traduções adulteradas.
Se ao menos o 1% o fosse de outra coisa,
mas dá-me para escrever poesia
e ser imbecil nos tempos livres.
Chego a sofrer de honestidade
porque ao tempo certo
ainda consegues dormir perto de mim;
Se não fosse por causa da confusão
seria porque estamos demasiado sós
e ao que parece estamos de novo
no ponto de partida. Como te poderia
meu amor, se ao menos entendêssemos
que o nosso contexto está partido,
mas só a morte é irremediável -
que amanhã somos outra vez
um dia novo na vida um do outro.

quinta-feira, 7 de abril de 2016

Outra língua

Ando a coleccionar falhas noutra língua,
esqueci-me de falar e agora
os lábios restantes
são coisas que não entendo.
Se pudesse seria outro poema,
outro poeta nas mãos
de outra fonética.
Se pudesse realmente
faria tudo de novo
igual ao presente.
Ando a coleccionar falhas noutra língua
falei demais e agora
os lábios restantes
são coisas sem entendimento
Se pudesse seria outro poeta
nas mãos
de um homem melhor
Se pudesse realmente
quem seria eu?

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Great Gear

The greatest value of certain words is their money despondency.
All dilettante is a disposition on obstinacy
cradling a free messianic tone
full of verses walking without shoes.
A Persona does not sell,
the Persona is concerned with the change.
Intrigues system often with an empty stomach,
worried about a seal within
a fully philatelic society.
The Great Gear works with broken parts.
A tiny myopia seems to compromise the body:
permanent housing produces
and fails, like any other machine.
Vision gives equality to detail.
This is the physical mechanism generating specialists
by defect,
perpetuating the gap in the mill
that only individual abstraction is able to correct.
All poetry is a glass of Western water.
Should calm the spiritual thirst of their children,
governed in the public service provided by democracy
and protection for marginalized thinkers.
When the system evolves through death.
There’s the face of certain poets on marketing,
to finally be sold against their will;
to be read against teenage will
and remain
hatred inert characters

terça-feira, 29 de março de 2016

de um lado o ruído o tempo da discórdia 
a esperança que vai pela cinza 
do outro a vida a passar descalça pela casa
silenciosa como o vento branco 
como naquele dia em que nos rendemos para amar
é com este trágico dualismo que resistimos ao mundo
ou à morte
a impetuosa força que nos chama para ir
e o silêncio calmo que nos pede para voltar 
assim as mães que acordam a rua à janela
e pedem aos filhos que voltem breves
assim este poema
e toda a tua ausência 
de um lado aquilo que quis ser mas nunca soube
o imperfeito uso da função dos objectos ou deste corpo
do outro lado a vida a passar descalça pela casa
em viagem mansa pelo tempo
rogo agora que me selem os lábios
e me deixem depois falar
que me cozam os lábios
com um fino silêncio branco 
o silêncio com que apagamos o ruído
o rumor que vem de dentro 
para me render definitivo ao mundo
sem hipótese de resposta 
que o silêncio seja a língua da persistência
da espera que dista entre este dia
e tudo aquilo que se opõe ao teu alcance

sexta-feira, 25 de março de 2016

Diminutivo

Para a tita e para o tata

Ele está sempre a morrer,
ele está sempre a renascer,
ás vezes até com as minhas mãos
e mesmo assim
há sempre outro homem algures.

Encontrei um pontão no mar Cáspio,
voltei a mentir as coisas certas.
Encontrei-te uma vez algures
a agora estamos no sitio certo.

Ele nunca se vai embora,
tal como disse o rei Salomão:
"O homem que não volte a beijar a sua mulher
nunca mais volta a ser homem".
E é incrível como nada é corpóreo
e há restos de uma mensagem
inscrita no horizonte.

quinta-feira, 24 de março de 2016

a última peça

a última peça que não vi no teatro em Atenas
porque me diziam ter visto vida junto à ágora 
e eu fui desgraçado
porque todos vamos cumprindo com as coisas que iludem o mundo
essa peça que terá sido inspirada em algum mito oriental
que nas costas de um poeta chegou a Éfeso
e só depois ao Piréu
testemunhando a geometria das coisas antigas 
que se enganaram na origem mas acertaram no destino
essa equação difícil e igualmente antiga que chamamos de amor
não resolve nenhum problema
não cura
nem nunca salvou ninguém de se apagar 
as imagens de uma terra final 
em que as mulheres se sentam à nossa espera
para depois se tornarem árvores de fruto 
e em tudo aquilo que uma criação pode com o corpo 
sem sair do lugar 
assim as mãos adornando o barro dos vasos 
depois da espera 
ou do fruto esbatido nas redes de apanhar 
e assim isto depois de tanto tempo 
de tanta água a bater em finisterra 
de tantas peças que fui ver para me contarem o mundo
à procura do texto da primeira cosmogonia
para me perceber e perceber o que viam os meus olhos
para recomeçar o mundo e contar de novo
quanto tempo daqui até à morte
até à ágora da última assombração

Essências n'O Movimento Impróprio do Mundo de Sara F. Costa



Os livros de poesia
lêem-se devagar
e ao acaso.

A não ser quando
a mão amiga é autora
e qualquer coisa
acontece com o livro.

Quando se torna inevitável escrever
porque é vida torrencial
ao ponto de inquietação.

Quando toda a poesia perde o seu sentido
e deixa de existir um último verso.

Talvez seja esse o segredo
de todas as grandes obras:
a vida de um criador
muito longe da morte.

***
  
Detenho-me junto do título do livro de poesia de Sara F. Costa. Quantos movimentos impróprios pode o mundo dar? Movimentos que, na minha visão em particular, se parecem com a inevitabilidade de uma elipse, uma elipse que nem sempre é própria, mas que nem por isso deixa de existir e de ganhar todo o tipo de ligações entre aquilo que é terra e o que é fogo. Logo o primeiro poema invade como só as cidades invadem, atirando-nos o horizonte de um Tejo sujo em Setúbal, um encontro súbito que se desvanece nesse horizonte de desleixo urbano; uma metrópole que fervilha dentro do corpo do sujeito poético enquanto o mundo se movimenta, tão lento quanto a inércia que o suporta. É neste longo e eterno movimento que as mais variadas formas vão surgindo como flores numa primavera distante e eclipsada. SFC interroga as coisas que não se vêm, mesmo tratando-se da obscuridade deste mundo que se parece a um palco. Um palco distinto onde a sua persona parece dançar sozinha uma valsa descontente. Um descontentamento que o é por todos os movimentos impróprios e sobre os quais SFC vai indicando preocupações cada vez mais materiais, não abandonando totalmente a dionísia sobre a qual a sua mão se deleita a escrever. Podemos ver como o Universo e as suas formas astronómicas se sobrepõem entre o mundo e o interior do sujeito poético.

É exemplar em “Na Rua em Daugavpils”, os versos: “ninguém sabe que galáxias profundas / dissimulamos por baixo da pele”; fazendo confundir corpos estelares transversos do corpo humano físico que, novamente, se fazem confundir com as referências geográficas pertencentes a SFC, “escuto o mar báltico no teu timbre”. Entre todas esncitas conexões que põem o sujeito poético no centro do Universo, também a linguagem assume esta importância clara de conexão do sujeito no centro da própria humanidade. Leio os versos, ainda na mesma orientação deste poema singular: “um homem passa por nós / enquanto te pergunta em russo / o melhor sítio para propor casamento à amada. / subitamente sentes que percebes um pouco de tudo”. Nesta forma é clara a questão da linguagem para o entendimento de um estágio da vida, assumindo proporções sensíveis e femininas que estão em oposição com a demanda rochosa e galáctica de que se faz parte da sua estética poética. Uma estética que é súbita e consegue pressagiar o seu próprio cenário pós-apocalíptico. Através de “O Autocarro Local” leio como se tratasse desse cenário: “este carro é a manhã pós-soviética, / há estrelas ardidas pelo chão, / a noite foi inexplicável”. E é impossível não ser atirado para esse lugar desolado que costumava ser a simplicidade de uma volta alegre neste autocarro, compondo ao longo do poema a sua própria ambivalência destruidora tomando ponto para o caos gerado pelo sistema em que atualmente vivemos; e em como dele não podemos fugir por mais impróprio que seja.

Em “Vou-te Contar o que Vejo:”, outras formas se estendem nesta primavera obscurecida, interrompendo a cadência com que os astros vibravam, mostrando antes a forma como sustêm os homens com os seus espíritos e estradas. Novamente volta a pintar tonalidades, “de verde, azul e branco / tudo cinzento por baixo” que se fazem confundir com a metrópole e os diversos signos que identificam um determinado caminho que vai “na mesma direcção” do corpo que o percorre em direcção ao seu fim último. Neste poema vemos as ligações de SFC: entre um poema que está vivo, mas cujo seus últimos verso são logo um cadáver. Torna-se a antítese de todas as palavras escritas que lhes são posteriores, mostrando como todas as ligações, inclusive aquelas que são maravilha humana “os carros alinham-se em andamento / todos com a inspeção em dia / e as luzes ligadas à noite” se desvanecem perante a única coisa que não liga e é desconhecimento total e absoluto: a morte.

A imagem do teatro e dos palcos volta florescer em “Amplifica o Actor que há em Ti” como uma referência cultural em SFC que está patente ao longo de toda a obra; como por exemplo em “Liberdade”, “tantas palavras começadas por a: acaso, ação, ator e adultério / amor / mas eu quero renascer das balas / e trazer-te livre / derramar-te no oceano com o mesmo sangue dos atores, / do adultério e de acaso”. SFC mostra a sensibilidade da mentira, do uso da ficção como cordão linguístico da própria forma literária, reinventando-se de novo a cada poema que surge numa persona que é diversa, mas tangível. É visível este deslocamento através de um corpo poético que deseja viver através da vida de outrem, como um ator, em “Exercício de Alteridade”: “às vezes queria ser outra para me vir como outras, / um espécie de exercício de alteridade / só que com fodas.”. Neste poema em concreto é possível ver como a persona surge cheia de uma desenvoltura sexual própria do imaginário pornográfico (“eu / ingénua como uma puta, /chupo e engulo”) onde uma forma que é naturalmente feminina rompe com o dogma masculino, impondo-se como uma igual através da corporização poética do elemento gineceu: “porque no meu útero rebentam todos os mares”.

A feminilidade ganha uma dimensão que se parece imprópria segundo o contexto social e cultural do meio interior português, um meio que vai sempre com uma década de atraso em relação à congénere ocidentalidade. O domínio de outras geografias culturais e linguísticas em SFC permitem exercícios de alteridade que oferecem ao leitor súbitos movimentos de índole social, nomeadamente no que toca o papel da mulher e da sua sexualidade segundo os tempos que avançam com cada vez maior rapidez e que são distinção deste milénio. Em nenhum momento SFC indica na sua persona a necessidade de se masculinizar para caber como igual no centro da humanidade. São exemplares os versos em “A Ouvir o Mar da Cama”: “os relâmpagos afogados no rosto / a areia desdobrada sobre o útero “. Da mesma maneira surge o poema “Louboutin”, carregado destas referências de poder feminino, onde a autora faz recurso a um símbolo de distinção social, uma marca de sapatos com que constrói realidades difusas sobre este real poder. Uma mulher que pode optar por não se assumir através do seu poder monetário, mas sim do seu poder elegante e que o é seja na Louboutin, na Zara ou na China. É a mesma poeta que autorretrata a sua persona feminina a uma escala interplanetária em “Uma Poeta”, “deixa-me contar-te / a relação tenebrosa entre o olhar e o rosto / a beleza original dos escombros / escondida nos músculos dos planetas.”

Esta marca social vai-se diluindo no outro, apontando para questões cada vez mais fundamentais no exercício da liberdade do homem perante a sociedade dos mercados. “Dicas para Gente Despedida” é um poema que tem a força da voz singular de SFC perante a realidade que a rodeia e uma preocupação carinhosa para com o que lhe é alheio, “relativiza, acredita em ti / enquanto te embriagas até ao vómito / e pensa que o vómito é uma condição passageira, tal como / o estado de desemprego em que te encontras.” Existe alteridade nas próprias composições linguísticas quando depois de “Dicas para Gente Despedida” chega “Dicas para um Desempregado”, modificando um estado de ânimo entre um e outro poema; quando existe a realidade súbita do despedimento e a realidade passiva do desemprego. Indicando no primeiro segmentos de conforto e no segundo a descrição de um tempo que é difícil de se concretizar, de proceder até ao seu fim. Por antítese surge logo de seguida “A Semiótica do Sucesso” como se SFC tecesse o pano que fecha o seu palco poético por cada mudança de cena: “e o meu instinto é demasiado solto / na tua postura muito reta / na gravata inesperada aos trinta / toda a tua invisibilidade relata a semiótica do sucesso”. SFC mantém um outro diferente, um outro que é invisível enquanto pertence à sociedade trabalhadora, diferente daquele que é uma dimensão social visível (o desempregado) e aquele que já se confunde perante a normalidade social em que se insere.

De outras formas florescem as palavras, construindo pequenas dionísias em torno de uma persona inflamada de fogo, tratando-se de uma marca que corre todo este livro que compõe um outro capaz de suster esta respiração profunda e emotiva. Em “Se te Esperasse Dificilmente Vinhas” logo os primeiros versos indicam o profundo desalento de um estado amatório, “és do género fugitivo: / existência de pó / na proa de navios sem frota”. SFC consegue espelhar a ideia da invisibilidade deste outro que parece incorporar um humano que nunca estará presente devido à condição exagerada do poeta e da própria poesia. Mostrando a condição da própria musa, uma espécie de sonho em constante fuga entre todos os corpos que se podem suceder no outro. É exemplar “Queimo-me na Boca das Horas” nos seus versos: “lembro-me desse Dezembro doce, / da trovoada cardíaca / um perigo com sabor a vida e / uma nostalgia a arder nas sílabas das minhas lamentações”. O lado Fogo é intermitente em quase todos os poemas, capaz de encadear também todas as questões Terra sobre as quais SFC se debruça. “De Saltos Altos Felpudos”, SFC volta a caminhar no sentido de uma regeneração feminina, mas usando sempre o recurso de uma imagem que é violentamente apaixonada, “no meu ventre ditador / a guerra foge-me. / deixa-me fracassar / enquanto estás quente.”. Trata-se essencialmente de uma violência que é sensível, mas que nem por causa disso deixa de cumprir o seu programa estético negro: “quero esquecer todo este sangue que me amadureceu / entre a idade, / quero doar-te uma pálpebra / enquanto levanto uma palavra.” (“Um Eu Surrealista”). Nas propriedades do tipo de poesia Fogo é possível ver determinadas inflamações de índole patriótica e regional, como é o caso de “Portugal I” e “Portugal II”. Sendo que o primeiro poema é indicativo dessa característica nos seus versos, “ao acordar quero beber / as palavras derivadas da infância. / onde hastear esta bandeira de sardinhas e ameijoas / senão no coração”. Já o segundo poema, “Portugal II” é a outra faceta de um país que não se trata apenas de um lugar no coração, desenvolvendo-se no sentido de uma preocupação cívica e mais terrena: “comprei uma paisagem vazia / para condizer com a catástrofe. / a austeridade do silêncio / não reestruturou a minha vida.”

Como em qualquer um destes movimentos qualquer corpo estelar que esteja na sua órbita volta ao lugar de onde partiu, repetindo-se até à mais completa infinidade. As variações temáticas compõem a chegada de qualquer estação, mesmo quando surgem primaveras enevoadas e palavras sobre este mar que parece banhar a mente de SFC; trazendo-nos para ricas imagens contrastantes; muitas delas, súbitas, imersas, em acordo e em desacordo com a inevitabilidade das emoções, mas também da inevitabilidade do que escapa à mão da poeta e é já engrenagem universal funcionando como um automatismo. Sem que se lhe escape, no todo, a profunda ligação que mantém com o que é humano e que segue humano independentemente de ser central ou periférico, de se localizar dentro do coração ou em qualquer estrada longínqua.